Igreja da Misericórdia

Imprensa e tábuas astronómicas

Em 1411, D. João I concedia a Gonçalo Lourenço de Gomilde [1], seu escrivão da puridade [2], alvará para instalar junto à ponte dos Caniços (a ponte mais antiga de Leiria e já assim designada nesta altura) um moinho para, entre outros ofícios, fabricar papel [3].

Dada a precedência de Leiria na instalação de uma fábrica de papel [4], diversos historiadores crêem que Leiria terá tido também a primazia tipográfica do Reino (e possivelmente da Península Ibérica) c. 1464-1465 [5]. Esta hipótese é rejeitada por outros historiadores devido à falta de provas nesse sentido (nomeadamente livros impressos nesta época que o atestem), no entanto, irrefutavelmente, data dos fins do século XV o estabelecimento da imprensa hebraica em Leiria, na sua Judiaria, junto da atual igreja da Misericórdia, então Sinagoga, propriedade do judeu Samuel Ortas e seus três filhos.

Expulsos de Castela, a família Ortas decide fixar-se em Leiria e nela instalar a primeira imprensa hebraica no Reino, não só devido ao facto de aqui já se produzir papel há bastante tempo, mas também por serem mercadores judeus a comercializá-lo. Porém, o destinatário das edições saídas do prelo de Leiria não seria o mercado local, mas antes a grande comunidade judaica de Lisboa, responsável pelas encomendas das obras aqui editadas.

A actividade desta imprensa terá sido curta (uma vez que, em 1495, D. Manuel I determina a expulsão dos judeus do Reino) e a sua produção editorial reduzida pois, desta imprensa, apenas se conhecem os incunábulos [6]: Provérbios de Salomão, 1492; Profetas Primeiros, 1494; Caminho da Vida, 1495 e as três edições conhecidas (duas em latim e uma em castelhano) do Almanach Perpetuum de Abraão Zacuto [7]; a primeira obra não hebraica saída de uma oficina hebraica, se bem que meio-cristianizada [8].

O Almanach Perpetuum, com as Tábuas astronómicas de Abraão Zacuto [9], foi traduzido de hebraico [10] para latim e para castelhano por José Vizinho [11] e foram utilizadas pelos navegantes dos descobrimentos, inclusive, por Cristóvão Colombo, na sua viagem para as Américas, e ainda por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.

Este Almanaque contém um conjunto de tábuas astronómicas elaboradas por Abraão Zacuto e explicações prévias para a sua consulta da autoria do seu discípulo José Vizinho. Os dados das tabelas são referentes aos anos de 1473 a 1476 mas, através de algumas correções, o almanaque prevê os momentos e coordenadas de acontecimentos celestes (efemérides – no caso, correspondentes ao Sol, Lua e cinco planetas conhecidos à data: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno) para os anos posteriores. Deste modo, era possível determinar a posição dos astros, determinar o momento dos eclipses e fazer diversos cálculos astronómicos, importantíssimos para os navegadores desta época de Descobrimentos ultramarinos.

As primeiras quatro tábuas do Almanaque permitiam determinar o «lugar do Sol» na eclítica [12]. Recorrendo à quinta tábua determinava-se o valor da declinação do Sol [13], que permitia obter a latitude do ponto de observação. A consulta desta tabela exigia alguns cálculos aritméticos elaborados para a época (interpolações lineares) que estariam fora do alcance da generalidade dos pilotos. Assim o Almanaque continha as tábuas quadrienais onde constavam as correções necessárias para as previsões para anos posteriores a 1476.

O grau de precisão oferecido por estas tábuas era tal que elas foram utilizadas como base de diversas outras tábuas destinadas aos marinheiros, onde se indicavam os resultados dos cálculos requeridos pelas tábuas de Zacuto. Foram destas tábuas que se deduziram todas as tábuas solares quadrienais calculadas em Portugal até à publicação das tábuas do Sol de Pedro Nunes.

Não apenas este Almanaque [14] mas todas as obras impressas pela família Ortas de Leiria são bastante raras. No caso do Almanaque estão inventariados 23 exemplares conhecidos à data, nenhum deles no nosso país [15]. A expulsão dos judeus do país por D. Manuel I levou ao êxodo de importantes intelectuais judeus (incluindo os tipógrafos judeus, excepto Abraão Ortas que aceita baptizar-se), mas também das obras por eles impressas.

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Referências:

Cabral, J. 1993. Anais do Município de Leiria, Volumes 1 e 2. 2.ª edição revista e aumentada, Câmara Municipal de Leiria.

Gomes, P. 1998. Leiria – A Terra e o Tempo, MinhaTerra.

Gomes, S. 2010. A Comuna Judaica de Leiria, das Origens à Expulsão.

Margarido, A. 1988. Leiria, História e Morfologia Urbana. Câmara Municipal de Leiria.

Silva, V. 2004. Leiria, Na Rota do Património, Ferraz & Azevedo, Lda.

Zuquete, A. 1950. Monografia de Leiria, A cidade e o Concelho 1950. Folheto.

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[1] Bisavô de Afonso de Albuquerque – Vice-Rei e Governador da Índia.

[2] Alto funcionário da Coroa com a função de secretário pessoal do Rei, com a responsabilidade de lidar com os seus principais e mais reservados documentos.

[3] O Alvará indica […] dous assentamentos velhos que em outro tempo foram moynhos que som em termo e ribeira da nossa villa de leirea […] que stam aso a ponte dos caniços […] para que ali se instalassem […] arteficios e engenhos de fazer ferro e serrar madeira e pisar burel [tecido artesanal português feito de lã] e fazer papel ou outras alguãs cousas que se façam com arteficio dagoa[…] contando que não sejam moinhos de pão. Na verdade, o termo correto será Azenha e não moinho, pois uma azenha é um moinho de roda vertical moído a água, que foi o caso deste engenho.

[4] Apenas 103 anos depois se instalou uma segunda fábrica de papel no convento da Batalha, sendo a terceira instalada, em 1537, nos coutos de Alcobaça, em Fervença.

[5] Américo Cortez Pinto, em Da Famosa Arte da Imprimissão (1949), refere a existência de uma imprensa cristã, pré-judaica, sob direção dos Cruzios (cónegos regulares do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que detinham a jurisdição de Leiria) localizada na base do monte da Nossa Senhora da Encarnação, próximo da fábrica de papel, que terá publicado várias obras, entretanto desaparecidas; em particular uma tradução da Imitação de Cristo, de Tomás Kempis, as Obras do Infante D. Pedro e, provavelmente, as primeiras edições das Cartilhas ou Cartinhas de D. Diogo Ortiz, Cartilhas de ABC, usadas na difusão da língua portuguesa nas terras descobertas.

[6] Designação dada aos livros impressos nos primórdios da imprensa com tipos: caracteres móveis de metal, mais uniformes que os antigos caracteres de madeira e, acima de tudo, mais duradouros.

[7] Na verdade, as três primeiras ainda são impressões tabulares, i.e., impressões em caracteres de madeira, que tem o inconveniente deste material que servia de matriz se tornar imprestável após um certo número de cópias. No caso do Almanach Perpetuum, a impressão já foi tipográfica, isto é, com tipos de metal.

[8] O impressor desta obra, dono da tipografia leiriense, Abraão Ortas fez-se cristão-novo para evitar a expulsão do Reino.

[9] Astrónomo judeu de origem castelhana, refugiado em Portugal após a expulsão dos judeus pelos reis católicos. Em 1493 está ao serviço do rei D. João II como Astrónomo e Historiador Real, mas esteve em Portugal pouco tempo pois os judeus seriam também expulsos de Portugal por D. Manuel I em 1496. Tendo recusado a converter-se ao catolicismo, acabou por se refugiar em Constantinopla.

[10] O original hebraico tem o nome de Hajibur Hagadol (tábuas astronómicas), Biur Luchot (cânones) e terá sido escrito entre 1473 e 1478.

[11] Médico (físico) e cientista judeu de origem portuguesa, aluno de Matemática e Cosmografia de Abraão Zacuto.

[12] Projeção sobre a esfera celeste da trajetória aparente do Sol observada a partir da Terra.

[13] Ângulo entre o plano do equador terrestre e o Sol, que pode também ser visto, em termos práticos, como o ângulo entre os raios da luz solar e o plano do equador. Como o ângulo entre o eixo de rotação da Terra e o plano da órbita terrestre (a eclítica) se mantém constante nos 23°27’ = 23.45°, a declinação do Sol varia regularmente ao longo do ano, repetindo o padrão que origina as estações do ano. Como a excentricidade da órbita da Terra é muito pequena, ela pode ser aproximada, para estes efeitos, a um círculo. Admitindo essa aproximação, a declinação aproximada do Sol (δ) pode ser calculada, para qualquer dia do ano, por:

onde N representa o número de dias decorridos desde 1 de janeiro.

[14] Foi reproduzido em 1915 por Joaquim Bensaúde a partir de um exemplar que existe na Biblioteca de Augsburg, na Alemanha, e da tradução em castelhano dos Cânones que existe na Biblioteca Pública de Évora.

[15] Conseguimos rastrear dois exemplares do Almanaque: um na Biblioteca do Congresso dos EUA (John B. Thatcher, Rare Book and Special Collections Division (http://www.loc.gov) e outro no Museu Hebraico de Nova Iorque (http://mjhnyc.org/). Existem também edições fac-símile do Almanaque, uma delas da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, datada de 1986. Uma cópia digital da versão em latim do Almanaque pode ser consultada a partir da Biblioteca Nacional: http://purl.pt/22001/3/#/1.