Cândida Pinto
Jornalista
Nascida em Torres Vedras há 51 anos, Cândida Pinto é hoje editora da secção internacional da SIC, mas o seu percurso profissional é marcado pelas reportagens em contexto de guerra, como enviada especial.
Como nasceu o seu gosto pelo jornalismo?
Nasceu ainda no liceu, no 10.º ano. Na altura havia uma cadeira de iniciação ao jornalismo e quem dava essa cadeira era uma professora licenciada em germânicas, que não gostava de jornalismo e que fez um esforço tal que conseguiu cativar-me rapidamente. Fizemos várias visitas de estudo a agências de notícias e eu percebi que era aquilo que queria fazer.
Como consegue conciliar a sua profissão com a sua vida pessoal?
Mal. A parte pessoal é muito sacrificada. É um trabalho exigente e portanto requer alguma compreensão por parte das pessoas que estão à nossa volta. Não é um trabalho do qual se consiga desligar a partir das 17 horas. Depende tudo de como se leva o trabalho, mas acho que isto, ou se leva a sério, ou não faz sentido. As coisas não se conquistam facilmente, dão muito trabalho, exigem muita responsabilidade. Mas depois também dão frutos. Também tenho boas compensações.
Como é que os futuros jornalistas se podem distinguir numa área tão competitiva?
Podem distinguir-se através de uma persistência grande. É preciso ter cultura geral, depois definir uma área, criar ‘bagagem’ e ver o que está a ser feito nessa área. Procurar muito aquilo que se faz nos sites, nos jornais, na imprensa internacional sobre o assunto. Chegar hoje a uma empresa e ter emprego é muito difícil. É preciso pensar noutras formas de trabalhar e há muita gente a trabalhar de uma forma menos convencional e que consegue sucesso. Portanto, as coisas não surgem de um momento para o outro, demora. É preciso ser persistente. Esse tempo em que estamos a fazer as coisas e achamos que “não é isto que eu quero fazer” é importante para apurar as técnicas. O tempo que a pessoa acha que está a perder, não está de facto. A vida profissional faz-se por camadas e, para se chegar aqui, é preciso que tudo isto seja sólido. Errar muitas vezes e ter alguém que nos diga “isso não presta!” e que nos explique porque é que isso não presta e diga qual é o caminho para fazer coisas que interessam.
Como se prepara psicologicamente antes da partida para um cenário de guerra?
Não há nenhuma preparação específica para isso. Há determinadas características de personalidade que podem ser trabalhadas se a pessoa quiser. Quando se parte para um sítios destes é preciso ter a consciência de que nos pode acontecer tudo até ao limite. Pode não se voltar. Psicologicamente é preciso ter otimismo e determinação, pensar “eu vou porque considero que é importante ir e porque quero ir”. Eu não me posso envolver excessivamente numa situação, tenho de ter a capacidade para entrar na situação, perceber o que se está a passar, mas manter ao mesmo tempo uma zona de fuga. É preciso ter capacidade psicológica para ver cenas altamente dramáticas e lidar com elas. Não se passa por isto tranquilamente. Obviamente que são situações fortes, que nos deixam marcas, que nos fazem dormir mal.
Quais são as primeiras barreiras que os jornalistas encontram quando chegam a um local de conflito?
Depende muito dos sítios. Por exemplo, quando se chega ao Afeganistão ou ao Iraque, que está em conflito, que é um sítio que tem uma cultura e história completamente distintas da nossa, a primeira barreira é a língua. Temos de arranjar um intérprete. Pode ser através de eventuais colegas que já lá estejam e que conheçam alguém. É preciso ter em conta que vamos entregar a nossa vida a uma pessoa que acabámos de conhecer, e depois há questões que têm que ver com a segurança que essa pessoa nos oferece. Temos de conversar com ele e, progressivamente, perceber como é a pessoa. Nós vivemos muito com rótulos. Colocamos o rótulo de ‘terrorista’, de Marrocos até à Indonésia: isso é horrível. Esquecemo-nos muitas vezes que as primeiras vítimas dos conflitos são as pessoas que vivem nesses países e que querem levar uma vida normal. É importante estar num sítio onde se está em minoria para perceber o que é ser minoria e o que é sofrer o estigma da minoria. Portanto, é preciso manter o espírito aberto, curiosidade, vontade de perceber os comportamentos, porque há muitas questões culturais que podem chocar. A língua é uma barreira; o intérprete é vital.
Já sentiu que a estavam a tentar manipular para passar determinada mensagem?
Tentativa de manipulação existe sempre. Depende muito das circunstâncias e das histórias que se procura fazer. Fugir à manipulação é possível e é nosso dever. A questão da manipulação tem que ver com isso, sobretudo quando são conflitos muito definidos. Quando precisas de credenciais para entrar em determinadas zonas, aí estás a ser teleguiado. Mas tanto podes estar a ser teleguiado pelo Gaddafi como pela NATO. Ou seja, quando um comandante da NATO dá uma conferência de imprensa é para dizer bem dos ataques da NATO. Tudo isto é informação. Agora, é preciso ter inteligência para trabalhar esta informação. Mandar propaganda para o lado, perceber o que é de facto importante. Tentar ir por aquilo que se aproxima da realidade, dar o retrato da situação. Ter consciência de que a vontade de manipular e os instrumentos da manipulação, normalmente em zonas de conflito, estão sempre presentes.
“O jornalismo português
precisa de mais investigação”
Qual o acontecimento que mais marcou a sua vida profissional?
Há várias situações curiosas. Adoro tentar perceber pessoas que se comportam de maneira diferente. Uma coisa que também me atrai imenso são os momentos da mudança de regime. Por exemplo, a queda do Gaddafi, na Líbia. Essa mudança de regime muito forte cria um período de anarquia total em que as pessoas rejubilam com o libertar-se da operação. Acabamos por lidar com muitas situações que nos fazem relativizar muitos problemas, que nos dão outra amplitude para a tolerância.
Um dos seus trabalhos de reportagem mais elogiados foi o da Líbia, em 2011. Como se sentiu perante toda aquela situação conflituosa e ainda te de estar a relatar em direto?
Foi uma coisa completamente inesperada, a cidade de manhã estava calma, mas tinham a mania de disparar para o ar de alegria. Chegámos ao hotel descontraídos e, de repente, estamos em direto e ocorre aquilo. Só queria que aquilo parasse, podia ter apanhado um tiro. Foi perigoso.
Como é a vida de um repórter que chega à redação e é informado que tem de partir de imediato?
A experiência ajuda imenso a resolver alguns problemas, mas tem de haver disponibilidade física e mental. É preciso avaliar a estabilidade física e mental para aceitar um desafio desses. Os cenários mudam politicamente, os tempos mudam, a maneira de se trabalhar um conflito mudou totalmente.
Alguma vez sentiu discriminação por ser mulher?
Já aconteceu estar a fazer uma entrevista e o entrevistado responder para o meu intérprete. Tem de se equacionar se vale a pena ou não, para o meu objetivo final, que é recolher a informação sobre determinado assunto.
Como pode o ocidente lidar com o fundamentalismo do Estado Islâmico?
Preocupa-me o modo como esta organização tem crescido nos últimos anos. Não há forma de lidar com esta organização, o modo como opera e se apresenta não é passível de qualquer tipo de tolerância. Conhecemos muito pouco desta organização. Esta é a primeira organização terrorista que manipula de forma sublime os meios eletrónicos e a internet. O requinte e detalhe dos vídeos está ao nível das melhores empresas de comunicação do mundo. A composição gráfica é muito importante, sendo que tem muitas leituras. A decapitação dos jornalistas James Foley e Steven Stoloff, segundo o Wall Street Journal, que fez uma pesquisa no ano passado, foi o vídeo mais visto nos últimos cinco anos. Não tenho dúvidas que o poder da propaganda é superior à força no terreno.
Considera um risco ou uma oportunidade a entrada e refugiados na Europa?
Eventualmente há terroristas que vêm com os refugiados, mas se houver um ataque em Munique ou em Dresden quem diz que não pode ser do Estado Islâmico? Se vier a acontecer um grande atentado em Munique, Viena de Áustria ou nos países que estão a receber os refugiados feito por outra entidade, quem diz que não ocorrerá o oportunismo da extrema-direita, que está de unhas de fora em toda a Europa, onde os que vêm são todos “feios, porcos e maus”? Se ocorrer um ataque em maior escala, a questão é muito delicada, pode acontecer por oportunismo. Porque não se monta uma operação na saída da Turquia ou entrada da Grécia para se perceber quem, de facto, são os refugiados que estão a sair de situações de conflito, quem são os refugiados económicos, e saber onde é que eles vão antes de entrarem na Europa?
Há países mais civilizados do que os outros ou é tudo uma questão de diferenças culturais?
Do ponto de vista civilizacional há países mais parecidos com o nosso, mas também diferentes. Somos muito autocentrados e pensamos que a nossa zona de conforto é que é boa. Temos parâmetros de qualidade de vida interessantes. Há culturas muito diferentes da nossa que são válidas para esses países como para nós.
Face à recente instabilidade governativa, na sua opinião, Portugal está preparado para enfrentar os compromissos assumidos com a União Europeia?
Penso que sim. Sou muito otimista. As pessoas fazem muitas tempestades. A União Europeia fez-se com políticas mais liberais ou sociais-democráticas, com maior empenhamento do Estado. Não temos poderes comunistas na União Europeia. Acho perigoso existir um pensamento único baseado nos mercados. Temos de ser maiores em termos intelectuais e saber onde estão as pessoas honestas para dirigir o país, com desapego ao dinheiro, profissionalmente capazes, brilhantes intelectualmente. É-me indiferente o partido.
Quais considera serem os principais desafios do jornalismo de hoje?
O jornalismo português precisa de mais investigação e de ser mais acutilante, os jornalistas têm de ter menos medo, mais temas e histórias.
Akadémicos 71 (28 de janeiro de 2016)
Entrevista por: Ricardo Mendes e Vânia Reis