Carlos Vaz Marques

Jornalista e Editor

Jornalista, editor, tradutor, escritor, Carlos Vaz Marques conhece bem o mundo dos livros e o da comunicação, áreas que sempre articulou no seu percurso profissional. A participar atualmente no “Governo Sombra”, vê-se no futuro a refletir sobre a entrevista como género, porque “perguntar tem muito que se lhe diga”. 

 

Frequentou a licenciatura de Línguas e Literaturas Modernas, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova. Como surgiu depois o interesse pela área da comunicação?
Na verdade, o meu primeiro interesse estava mais ligado à literatura do que propriamente à comunicação e foi por isso que fiz esse curso. Nos primeiros tempos fui professor, durante dois anos, ainda antes de terminar a licenciatura, com a habilitação suficiente, mas ao mesmo tempo o meu interesse pela literatura tinha uma vertente ligada à escrita e ao jornalismo cultural. Fui convidado, por uma circunstância fortuita, para escrever para o Jornal de Letras, Artes e Ideias, e foi o primeiro sítio onde publiquei.

 

Integra depois a equipa da Rádio Universidade Tejo, em meados dos anos 80. Foi aí que se instalou o “bichinho” da rádio?
Tinha esse gosto pela rádio, mais pela área da divulgação musical. Quando me convidaram para integrar a redação do JL para escrever alguns textos, reportagens e entrevistas, aquilo tornou-se mais importante para mim do que o percurso que tinha feito até ao momento e daí seguiu-se um trajeto sem grandes surpresas. Tinha ligação à rádio e aos livros, porque tudo isto foi sempre paralelo. Depois, o Emídio Rangel convidou-me para fazer umas rubricas sobre livros na TSF e, ao fim de um ano, para integrar a redação, deixando o semanário JL, onde estava na altura, para passar a repórter generalista e editor de notícias. Foi por aí adiante. Fui repórter político, enviado especial a vários sítios, fiz noticiários, o “Fórum TSF” e acabei por voltar aos livros a fazer uma rubrica que durou até há um ano.

 

Que aprendizagens se levam da experiência em rádio universitária? O que mais o marcou?
Era uma rádio universitária que emitia no Instituto Superior Técnico. Era constituída por alunos universitários de várias licenciaturas, de várias faculdades. No fundo, fiz lá vários programas, mas eram todos ligados à música. Houve um que tinha também umas entrevistas, aliás, mais do que um, mas era tudo relativamente amador e incipiente. E ao mesmo tempo muito apaixonado e intenso, porque vibrámos muito com aquela experiência inicial que estávamos a ter. As experiências, os ensinamentos… Foram os ensinamentos da “tarimba”, digamos, do traquejo, da experiência de encontrar… e de perceber o que funcionava pior e o que funcionava melhor. Por exemplo, de me habituar à minha própria voz, que é um processo por que têm de passar sempre as pessoas que fazem rádio, porque a voz que nós temos dentro da cabeça não é aquela que depois ouvimos no gravador, quando a gravamos. Foi um período de adaptação muito importante, mas que não saberia descrever exatamente. É como a infância, não é? Digamos que está lá tudo em potência e é lá que encontramos as marcas do que vai ser importante para nós, mas é difícil distinguir o momento A e o momento B em que algo se tornou de facto relevante.

 

Em 1990 torna-se jornalista da TSF. Como foi a adaptação a uma rádio nacional e quais as diferenças entre a rádio da altura e a que conhecemos na atualidade?
Bem, a adaptação foi entusiasmada e difícil. Difícil só no sentido em que senti o peso da responsabilidade, porque de um momento para o outro estava a ver-me num meio que chegava longe, mais longe do que o nicho que era o JL, onde eu escrevia anteriormente, ou a Rádio Universidade Tejo, em que comecei. Aquilo era um megafone gigante e, portanto, percebi que tinha repercussões a que não estava ainda habituado. Nesse sentido foi um sobressalto, eram tempos muito intensos. Nós passávamos 20 horas por dia na rádio, cheguei a dormir lá em ocasiões especiais, em grandes acontecimentos mundiais. Havia de facto um espírito de equipa também muito forte. A TSF marcou uma época. Penso que é difícil hoje, para quem não viveu esse período, acompanhar o que foi essa experiência. Diria que o que se ganhou em profissionalismo, em profissionalização, em organização, perdeu-se em entusiasmo. Portanto, é essa a principal diferença que eu vejo desse período para agora, em termos da rádio.

“Entrevistar tem muito
que se lhe diga”

No ano de 2001 estreia “Pessoal… e Transmissível”, o seu primeiro projeto individual radiofónico, que deu depois origem ao livro homónimo. Qual a sensação de ter o próprio programa e qual o motivo de escolher o género de entrevista?
Eu já tinha feito programas próprios na rádio universitária, mas claro que a escala na TSF era muito diferente. O programa nasceu de uma circunstância fortuita. Propu-lo após entrevistar um escritor espanhol, em Madrid, numa altura em que a rádio tinha capacidade de apostar em trabalhos menos correntes. A entrevista teve uma ótima repercussão e fui questionado se não tinha vontade de entrevistar com regularidade. A partir de uma entrevista, nasceu todo o programa, que acabou por estar no ar durante 16 anos.

 

Enquanto repórter da TSF, qual foi a viagem mais enriquecedora a nível profissional e pessoal?
Bem, todas as viagens são enriquecedoras, seja para o bem ou para o mal. Diria que a mais me marcou foi, sem dúvida, Timor-Leste, antes da independência. Foram duas estadias, sendo que cada uma durou cerca de um mês: uma antes do referendo e outra logo a seguir. Estive presente no momento após a declaração dos resultados, quando ocorreu uma reação das milícias indonésias que colocou o país “a ferro e fogo”. Vim-me embora quando Timor-Leste estava, literalmente, a pegar fogo. Durante esse período de campanha, ocorreram vários assassinatos e ameaças que me levaram a fazer-me passar por um repórter francês, pois as milícias pró-indonésias tinham como alvo os repórteres portugueses.

 

O seu percurso profissional cruza-se igualmente com os livros, nomeadamente na área da tradução. Como surge essa atividade e quais os seus principais desafios?
Tendo feito a minha formação na área da literatura, nunca deixei de ter esse gosto particular, que hoje é mais forte que o interesse jornalístico. A certa altura comprei em Barcelona uns livros do autor Francisco Umbral, em especial o livro “Mortal e Rosa”, e foi um autor de que gostei bastante. Por prazer de brincar com as palavras e experimentar como aquilo soava em português, comecei a traduzir pedaços do livro. Ao final de um tempo, já tinha uma boa parte traduzida. Esse autor só tinha um livro publicado em Portugal, numa editora que já não existe, que era a Campo das Letras, e um dia lembrei-me de a contactar e perceber se tinham interesse, uma vez que tinham um livro do autor e não havia mais referência dele em Portugal. Propus que vissem a tradução e eles responderam-me para a acabar porque iam publicá-la. Traduzi também outros livros e liguei-me a uma editora, a Tinta da China, onde sou responsável por uma coleção de literatura de viagens, área que me agrada bastante. As coisas encadearam-se. Fiz algumas traduções para essa coleção, mas não sou nenhum tradutor profissional, no sentido em que não é a minha principal ocupação. Traduzo coisas que me interessam, propõem ou de que gosto pessoalmente.

 

Entre 2013 e 2018 assumiu o cargo de diretor da Granta portuguesa, revista literária com génese no periódico inglês criado em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge. O que implica construir uma revista inteiramente dedicada à literatura na atualidade?
Granta tem uma história e tradição já longas. Eu fui assinante da Granta por um período de três ou quatro anos. Quando percebi que tinha mais números por ler do que os que tinha tempo para ler, acabei por não continuar a assinatura. A dona da editora Tinta da China, Bárbara Bulhosa, propôs-me que fizéssemos uma revista literária em Portugal, e, por um conjunto de circunstâncias do acaso, falei-lhe na possibilidade de fazer uma versão portuguesa da Granta. Entretanto, e por mais um acaso, ela conheceu o responsável internacional da Granta no Brasil e falou-lhe disso. Mostrou-lhe o nosso catálogo e achou que tinha tudo a ver com a revista. A coisa aconteceu com a naturalidade das coisas impossíveis que se tornam reais: de repente o que era um sonho meio parvo, acabou por se tornar realidade.

 

O “Governo Sombra”, um programa sobre a atualidade sob a lente do humor, nasceu em 2008 na TSF e cresceu também para a televisão em 2012, prolongando-se até aos dias de hoje. Qual o segredo para manter o sucesso do programa?
O segredo é sermos os quatro participantes muito diferentes, entre nós, mas também ao mesmo tempo termos muito a unir-nos, nomeadamente o gosto pela conversa, sem “armar aos cágados”, como se costuma dizer, portanto, uma conversa, digamos, informal, levando as coisas a sério, tanto quanto elas são para ser levadas a sério, mas também não as levando demasiado a sério. Conseguimos olhar para a realidade com algum espírito irónico, porque as coisas não têm que ser necessariamente solenes e pesadas. E depois o facto de nos darmos todos bem é essencial, não é? Evidentemente que, se alguém estivesse ali em conflito ou desagradado com outro dos membros do painel, provavelmente teria acabado e isso não é provável que aconteça. Temos todos um conjunto de valores e de atitudes que, sendo nós muito diferentes uns dos outros, nos unem.

 

Como é a dinâmica de grupo com Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares?
Os diferentes pontos de vista fazem parte da natureza do programa, quer dizer, são mesmo a matéria-prima do programa. Nós não estamos ali para nos convencermos uns aos outros de nada, não é? E, portanto, acaba por ser fácil. Temos uma coisa em comum, sim, temos um ponto muito importante que nos une, que é a ideia de que a liberdade de expressão é fundamental e de que cada pessoa está habilitada a exprimir o seu ponto de vista, respeitando o ponto de vista dos outros. Basta isso. Claro que há coisas que um acha que o outro disse de forma tola, ou que o outro pensa que é uma palermice ou uma aberração, mas ninguém se melindra demasiado com isso e, portanto, a coisa corre bem.

 

Atualmente atua em vários contextos da comunicação. Como consegue conciliar as áreas da escrita, audiovisual e radiofónica?
Não há nenhum segredo especial. É necessário ter espírito de organização, manter uma certa disciplina, mas, no fundo, é trabalhando. Trabalho, de facto, algumas horas por dia, mas, como são áreas nas quais eu gosto de trabalhar, não me custa tanto como se fossem áreas pelas quais não tenho apreço.

 

Qual a sua perspetiva em relação aos desafios que se colocam hoje ao jornalismo?
São múltiplos, difíceis e para alguns não encontro uma solução clara, com muita pena minha. Um aspeto que me preocupa é o facto de a imprensa em papel ter os dias contados. O audiovisual cresceu drasticamente, o que fez com que os produtos jornalísticos entrassem em competição com todo outro tipo de comunicação difusa, como as redes sociais e os novos media. Este fator afeta o financiamento do jornalismo, criando dificuldades à construção de projetos de qualidade, não só pela falta de financiamento, como também pela dificuldade em cativar o público.

 

 Tendo em conta o contexto pandémico, qual dos setores em que trabalha considera ter sido mais afetado?
Toda a sociedade foi afetada e o jornalismo e os media também foram, desde logo por uma quebra de receitas e problemas de financiamento. Não sabemos ainda as sequelas que vão ficar de tudo isto, mas estamos todos “metidos num molho de brócolos” que esperamos que se resolva, sabendo que vamos ter um período longo de problemas associados a este tempo anómalo. A mim, pessoalmente, não me fez grande diferença sendo que faço teletrabalho há muito tempo e, portanto, não senti muito impacto dessa transformação.

 

Existe ainda algum projeto que gostasse de realizar? Quais as projeções para o futuro?
Existem vários. Uma das coisas que quero fazer é uma biografia da entrevista. Pratiquei muito este género e entrevistar/perguntar tem muito que se lhe diga. Parece-me que é um ensaio que quero escrever e sobre o qual tenho algumas ideias, por isso é um dos projetos que vou realizar o mais brevemente possível.

 


Akadémicos 92 (15 de abril de 2021)
Entrevista por:
Carolina Faustino, Diogo Maçarico e Jéssica Patrício