Inês Pedrosa

Jornalista e Escritora

Primeiro veio o jornalismo, depois a literatura. Eterna apaixonada pela escrita, Inês Pedrosa conta com mais de uma dezena de obras publicadas. Não gosta de hipocrisias nem de falsos moralismos e não entende o porquê de tanto pessimismo em Portugal.

 

 Tem duas obras que inspiram e transpiram padre António Vieira: No Coração do Brasil e A Eternidade e o Desejo. O que é que mais admira nesse “Imperador da Língua Portuguesa”, como lhe chamou Fernando Pessoa?
É a união de vários talentos, várias características. Não posso apontar apenas um traço. Cheguei ao padre António Vieira pela extraordinária força e novidade dos seus textos, escrita e pensamento. Quando escrevo livros que, de alguma forma, apontam para ele, o objetivo último é fazer com que as pessoas se interessem e leiam mais a sua obra, que tem estado um pouco esquecida.

 

Existem padres António Vieira no nosso tempo?
No tempo dele e a seguir a ele houve, e ainda há, pessoas com a mesma capacidade de trabalhar a favor dos outros. Mas juntar numa só personalidade as características de pregador, orador – ou político, se quisermos –,  escritor de um talento tão raro, diplomata e aventureiro, é algo difícil de conseguir. Ainda há um certo estigma social que procura “proibir” o escritor de intervir politicamente. A escrita não exige uma concentração numa torre de marfim. Nessa medida, o padre António Vieira continua a ser um exemplo. E realmente não vejo ninguém semelhante nos dias de hoje.

 

São muitas vezes outros povos que reconhecem o valor de artistas portugueses: José Saramago é mais acarinhado pelos espanhóis; o Brasil lê mais padre António Vieira do que Portugal. Temos tendência a desvalorizar o que temos de melhor?
Não damos valor ao que de melhor se faz e tendemos a criticar permanentemente o trabalho dos outros. São críticas feitas com o intuito de tentar destruir, desfazer o trabalho alheio. Perdemos tempo a queixarmo-nos da falta de oportunidades. Somos muito pouco positivos. Esta semana fui apontada como corajosa por assumir a direção da Casa Fernando Pessoa. Mas corajosa porquê? Vou lutar pelos meus objetivos, se não conseguir venho-me embora, sou livre como era. Há quem diga que sem meios não vale a pena fazer nada. Mas o Francisco José Viegas também não tinha meios e fez bastante. Às vezes, tenho vontade de perguntar às pessoas o que fariam se tivessem nascido no Afeganistão ou no Sudão. Matavam-se?

 

Muitos autointitulam-se escritores. Todos produzem livros e o resultado é existência de algumas obras de muito pouca qualidade. Por outro lado, as estatísticas revelam níveis de leitura muito baixos. Qual é o hoje o papel da literatura?
Tenho uma perspetiva otimista quanto a isso. Se é verdade que se editam mais livros que não são literatura, também é verdade que as tiragens são muito maiores do que há 30 anos. E as pessoas leem mais literatura. A razão pela qual florescem editoras deve-se precisamente ao aumento das vendas. Claro que poderia haver um crescimento mais favorável à literatura. Por outro lado, há mais bibliotecas por todo o país. Por isso, tenho esperança que o trigo e o joio se separem. Que os bons e os maus livros comecem a ser facilmente identificados.

 

O que é mais saboroso: a escrita jornalística ou a escrita literária?
É claro que a escrita literária é mais livre. Apetece sempre mais. Por outro lado, também se torna mais complicada, mais exigente, mais angustiante. Mas tem um sabor especial, sem dúvida.

 

Acredita no dom?
Acredito que cada pessoa tem o seu dom particular. Deve procurá-lo, deve descobri-lo e desenvolvê-lo. O dom não está obrigatoriamente ligado à criatividade. Ser um excelente contabilista é um dom e não é trabalho criativo. Um dos defeitos da educação nos últimos anos foi a tónica que se colocou na necessidade de as crianças serem criativas. Ainda não sabem escrever português correto e já têm de escrever grandes composições. O que pode tornar-se até angustiante. Existem jovens no liceu que escrevem dois versos e acham maravilhoso. Não leem nada porque dizem que não querem ser influenciados. Há dons, sim. Muito diferenciados. Mas é preciso ver o que os outros fizeram. A criatividade absoluta não existe.

“Há um certo estigma social que procura proibir
o escritor de intervir politicamente”

Defende-se que a comunicação social é imprescindível para a manutenção da democracia. O que representa para si o jornalismo?
Em Portugal, é muitas vezes o jornalismo que denuncia o sistema burocrático e de difícil acesso ao sistema judicial. Há casos que demoram anos nos tribunais, o que é, por si só, uma injustiça. Os processos são arquivados e as pessoas ficam com a noção de que não há justiça. Isto é uma falta e democracia terrível. O jornalismo tem a função de fazer perguntas. De continuar a alertar e a inquietar as pessoas sobre o que não funciona na sociedade. Nesse sentido, é um elemento imprescindível. É por isso que nenhuma ditadura gosta de jornalistas e todas os proíbem.

 

Se fosse uma cirurgiã da comunicação, que alterações faria aos meios de comunicação nacionais?
O problema fundamental da imprensa prende-se com a insistência em fazer concorrência à televisão e à rádio. Dá-se cada vez mais espaço à imagem e menos ao texto. Não se investe em investigação e em grandes reportagens. Se as pessoas acabam de ler o jornal e sentem que não aprendem mais do que a ouvir a rádio de manhã ou a ver a televisão à noite, desistem de o comprar. Investe-se pouco em jornalismo de investigação porque é caro, demora tempo. A televisão, pelo contrário, já percebeu que uma grande reportagem no final do telejornal prende as pessoas e aumenta as audiências.

 

Há uns dias, um jornalista perguntava ao presidente da República se o mundial de futebol de 2018 não deveria ser uma “prioridade nacional”. O que tem a dizer sobre as prioridades dos portugueses?
Só temos alento para as grandes comemorações. Só vi Portugal encorajado aquando do Euro 2004. Com o campeonato europeu gastaram-se muitos recursos. Se recebermos o mundial vai voltar a ser gasto muito dinheiro, que é algo que o país não tem. Acho um escândalo. É mesmo criminoso o que se gasta com o futebol. Para os hospitais, para os incentivos à fixação das pessoas no interior, para a cultura, para não ter de se fechar tudo quanto há, já não existem esses recursos financeiros.

 

Assumiu esta semana a direção da Casa Fernando Pessoa. Quais são as grandes metas para este novo desafio?
Continuar o trabalho que vinha a ser feito pelo Francisco José Viegas e divulgar a obra de Fernando Pessoa são duas grandes prioridades. Além disso, é importante manter aquele espaço, que foi o último onde viveu Fernando Pessoa, como polo cultural. A Casa debate-se com fortes dificuldades financeiras. Criar uma linha de merchandising, com t-shirts e postais ligados ao autor seria muito positivo. Mas há imensos entraves. A legislação financeira não prevê que os lucros de museus e casas-museu revertam a seu favor. Nem na sua totalidade, nem parcialmente. O dinheiro vai todo para o bolo do Estado, lá para cima, para uma nuvem qualquer. Quero empenhar-me em alterar esta situação para conseguir mais receitas para a Casa.

 

Apesar da passagem dos tempos, continuamos a assistir a inúmeras violações dos direitos humanos. A comunidade internacional tem cumprido o seu dever?
Deveriam ser estabelecidos valores mínimos para os eventos conjuntos de nível internacional. Seria a única forma de pressão. Mas hoje vivemos numa má consciência, convictos de que todas as culturas e civilizações são iguais. Não são. Uma cultura que maltrata uma parte da humanidade, sejam as mulheres ou as crianças, não é igual a uma cultura que respeita a dignidade das pessoas. Diz-se que são especificidades culturais. Ora, amputações e apedrejamentos não podem ser especificidades culturais. Se pensarmos um pouco, a China nunca devia ser o palco dos Jogos Olímpicos porque não cumpre os critérios mínimos. É preciso relembrar que os Jogos Olímpicos são, além de uma celebração de desporto, uma celebração de valores da Humanidade. Sempre foram, desde a Grécia Antiga. Valores esses que não são cumpridos naquele país.

 


Akadémicos 24 (28 de fevereiro de 2008)
Entrevista por:
Miriam Gil e Cláudia Silva