José António Cerejo

Jornalista

O sorriso afável e a simpatia não permitem adivinhar o cansaço e a solidão de muitas horas, dias e anos de pesquisa nalguns dos principais dossiês mediáticos em Portugal. Burlas em Câmaras, financiamento ilegal de partidos, diplomas irregulares de governantes ou desvios de dinheiro de empresas, tudo foi matéria de investigação e de notícias daquele que é um dos decanos do jornalismo português. Aos 62 anos, José António Cerejo é uma das referências do jornalismo de investigação em Portugal. Apesar do entusiasmo juvenil que tem por todos os assuntos ‘quentes’, há alguma desilusão com o rumo do jornalismo no país e no mundo.

 

Trabalhou e fez a cobertura em casos relevantes ao longo da sua carreira. É difícil trazer a público notícias sobre os casos Freeport, a licenciatura de Miguel Relvas, os projetos arquitetónicos de José Sócrates, o trabalho de Passos Coelho junto da Tecnoforma, entre outros?
Há duas coisas. Trazer ao Público e trazer a público. Trazer ao Público, jornal onde eu trabalho, nem sempre é fácil, como não é fácil trazer casos como estes a qualquer jornal, porque hoje em dia ninguém está muito interessado na verdade nem em jornalismo que incomode. Este tipo de trabalhos incomoda sempre alguém. Para quem tem poder de decidir o que se publica ou não publica é mais fácil não incomodar ninguém. Já trazer a público estas coisas, divulgar, não é difícil nem é fácil. Dá trabalho. Exige sobretudo persistência e alguma experiência para dominar um conjunto de técnicas e recursos. É preciso conhecer como se tem acesso a documentos que é suposto serem públicos, mas que, quem os tem, não gosta de os mostrar, embora tenha obrigação de o fazer. É preciso saber procurar e insistir. Depois há que saber aquilo que se quer. Aquilo que se procura é essencial para saber o que se procurar. Não é especialmente difícil, mas temos de ter algumas técnicas.

 

E que técnicas são essas?
Essas técnicas passam muito pelo conhecimento dos direitos dos jornalistas e dos cidadãos, e pela maneira como se põem em prática. São direitos que têm a ver com o acesso à informação porque para se chegar a essa informação não é preciso arrombar cofres de ninguém, nem cometer uma ilegalidade que não nos compete a nós, jornalistas, cometer. O essencial é saber onde é que está a informação que é pertinente, saber qual é o ponto de partida e ter tempo e paciência para a encontrar. A internet agora serve para tudo. Há dois anos, fazer um trabalho, como o que fiz nos últimos quatro meses sobre as ligações de Passos Coelho à Tecnoforma, ter-me-ia levado um ano e teria sido muito mais complicado.

 

Os políticos são sérios?
Os políticos não aparentam ser sérios. A imagem que a generalidade dos cidadãos tem dos políticos está extremamente degradada. Há uma percentagem muito significativa de políticos que podem ter muitas qualidades, mas a honestidade não costuma ser uma delas. Nem a honestidade em termos pessoais ou na forma como se relacionam com os outros, nem no sentido mais estrito da palavra, a honestidade nos negócios e economia.

 

Como é que um jornalista lida com a pressão?
Um jornalista lida com a pressão da maneira que é capaz. Ou com muito ou com pouco stress; com ou sem a ajuda de um ansiolítico. Também se aprende a lidar com a pressão com a experiência. É também preciso ter muito claro o que é a função do jornalista e quais os seus direitos e obrigações, para que, quando esteja a ser pressionado, ele saiba que está no seu direito. Se eu estou no meu direito, estou muito mais à vontade com a pressão. Uma outra coisa essencial é manter distâncias. Os jornalistas têm que saber que não amigos e não devem beber copos com as pessoas que em determinado momento são fontes de informação.

 

E com a crítica?
Uma pessoa tem que a ter em conta, mas também não se pode deixar instrumentalizar pelos críticos que muitas vezes não são desinteressados nem são ingénuos. Muitas vezes são organizados e exprimem interesses, por exemplo na blogosfera e nos sites dos jornais. Anónimos ou identificados, muitas vezes estão interessados na matéria que estão a comentar. As críticas têm que ser tidas em conta, só os burros é que as não têm em conta, mas uma pessoa tem que procurar perceber a natureza dessas críticas e fazer o seu juízo sobre a validade ou não.

 

Se tivesse de escolher uma palavra para definir o jornalismo de investigação atualmente, qual seria?
Raridade. Faz-se muito pouco. Há coisas que são publicadas com o carimbo de jornalismo de investigação e muitas vezes pouco têm que ver com investigação e até pouco que ver com jornalismo. Há trabalhos que são difundidos que não são mais do que sínteses de investigações feitas por outros, com ou sem isenção. Estou a falar de sínteses de trabalhos de investigação feitos pelas polícias ou pelo Ministério Público que depois dão direito a uma acusação. Muitas vezes há jornalistas que, com ou sem violação do segredo de justiça, resumiram o despacho de acusação ou pronúncia e dizem que é jornalismo de investigação, mas não é. Às vezes até são as fontes que divulgam estes casos junto dos jornalistas porque lhes interessa. O verdadeiro trabalho de investigação faz-se pouco porque dá trabalho, demora muito tempo e custa caro. Além disso, implica riscos, sobretudo para as empresas de comunicação porque essa investigação pode dar origens a problemas de vários tipos. Muitas vezes, surgem casos em que as empresas são obrigadas a pagar indemnizações.

“O jornalismo de investigação
incomoda sempre alguém”

Em que medida é que o jornalismo pode contribuir para a contestação social?
O jornalismo não contribui diretamente para a contestação, mas contribui para que os destinatários adquiram informação e conhecimentos, que os levam a formar opiniões e a sentir necessidade de agir e de intervir na mudança das situações que consideram injustas. O jornalismo é uma fonte de cidadania, contribui para formar as pessoas enquanto cidadãos e enquanto interventores na sociedade em que estão inseridos. Todas as ditaduras anseiam por ter uma opinião pública ignorante, que não conhece nada e que nada porá em causa.

 

Acredita no jornalismo de cidadão, a intervenção das pessoas no espaço mediático produzindo aquilo que consideram ser notícias?
A intervenção dos cidadãos nas redes sociais e o envio de dados para os meios tradicionais é útil mas as pessoas que consomem informação com essa origem têm que perceber que é uma informação que está muito condicionada porque é produzida por pessoas que não são profissionais da informação nem seguem quaisquer regras de conduta deontológica. São pessoas cujo trabalho pode ser muito interessante, mas muitas vezes não tem credibilidade.

 

Qual é a relação das redes sociais com o jornalismo?
Para os jornalistas, as redes sociais e os blogues devem funcionar como pistas de próximo trabalho e como fontes de informação. São muito úteis para essas coisas, tomando as devidas precauções.

 

A crise económica levou a uma crise jornalística? As pessoas querem estar mais informadas?
Numa situação como a atual, as pessoas precisam, mais do que nunca, de informação para saberem com que linhas e que se hão de coser. É verdade que esta situação não ajuda a que essa informação se produza com a qualidade necessária. Com a crise, as fontes de receita dos meios de comunicação são profundamente afetadas. Com a falta de investimento, as empresas não anunciam, os leitores não têm dinheiro para assinar as publicações na internet nem para comprar as que estão na banca. As empresas têm enormes dificuldades em sobreviver e é óbvio que o produto que oferecem é um produto de menor qualidade quando realmente as pessoas precisam mais dele. Precisam mas não quer dizer que procurem, até pelo contrário. Quanto mais as pessoas estão afetadas na sua vida quotidiana, mais vontade têm de se abstrair consumindo outras coisas que as afastem do quotidiano.

 

O papel vai acabar? Só irão sobreviver as publicações online?
A tendência é para a redução do peso da informação em suporte papel, mas imagino que há sempre meia dúzia de pessoas que gostam de sujar as mãos na tinta do papel. Não há dúvida que o papel vai tornar-se residual, mas o prazo ninguém o sabe determinar. Há modas que aparecem, e pode ser que qualquer dia os jornais em papel sejam considerados um produto vintage e que tenham muito sucesso.

 

Público despediu recentemente vários profissionais. Como lidou com o processo?
Já está tudo dito sobre isso. Foi um processo que, do ponto de vista empresarial, tinha de acontecer. E aconteceu. Por mais que os que cá ficaram se esfarrapem, as consequências são óbvias para a qualidade do jornal. Esse processo poderia era ter sido diferente na maneira como foi conduzido. Podia ter sido conduzido com mais lisura e com mais humanidade e verdade. Talvez houvesse outras soluções para salvar este jornal, mas para isso era necessário outras pessoas nos lugares de decisão.

 

Qual é a sua opinião sobre o P3?
P3 pertence a futuro no qual eu ainda não estou. Por aquilo que sei, e é muito pouco, acho que é um projeto muito interessante e que pode permitir a fidelização de leitores. O P3 pode ser uma maneira de interessar a um público mais jovem, pelos temas que aborda.

 

E sobre o Inimigo Público? É verdade que vai acabar?
Ainda não se sabe muito bem o futuro dessas páginas, mas acho que é um projeto interessante, que tem público e qualidade. É um complemento importante para um jornal sério, como o Público.

 

Tem alguma situação que tenha marcado o seu percurso profissional?
Há muitas. Para não recuar muito no tempo, talvez fale do despautério e pouca vergonha de José Sócrates, primeiro-ministro na altura, que teve de me vir insultar nas páginas do jornal onde trabalho a propósito de eu ter revelado coisas de interesse público, nomeadamente os dinheiros públicos, mas que ele queria manter em segredo. Quando comecei a publicar essas notícias que tinham que ver com financiamentos do Estado à Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO), quando ele tutelava a área da defesa do consumidor entre 1999 e 2001, Sócrates escreveu um artigo neste jornal desacreditando-me e dizendo que eu padecia de um delírio mental. O artigo foi publicado com o meu acordo, mesmo depois de ele já ter exercido por duas vezes o direito de resposta, na certeza de que eu o iria pôr em tribunal por causa das ofensas que me fazia nesse artigo. O processo esteve seis, sete anos nos tribunais e terminou sem que nenhum tivesse de pagar nenhuma indemnização ao outro. O que me marcou mais foi um político sentir-se incomodado com a investigação de um jornalista.

 

O que faz um bom jornalista?
O principal requisito de um bom jornalista é a curiosidade, a sede de saber. Um jornalista que não é curioso, não tem vontade de saber, de perceber, dificilmente terá alguma coisa para contar.

 

Julga que pertence a uma das últimas gerações de jornalistas?
Não. Mesmo com o tal jornalismo de cidadão, terá que continuar sempre a haver pessoas que recolham, tratem e difundam a informação de acordo com regras profissionais e essa é a função do jornalista, tentando manter sempre a máxima objetividade possível.

 

E considera que existe futuro no jornalismo de investigação?
Depende da evolução do setor, das relações entre os patrões e empregados das empresas detentoras de meios de comunicação social e da evolução da tecnologia. A tecnologia está a evoluir de uma forma que permite reduzir os custos de produção de informação. Pode ser que seja possível fazer bom jornalismo de informação com meios relativamente escassos que não precisem de nenhum acionista que controle e que possa ser um travão à informação jornalística. Mas não se podem fazer futurologias.

 


Akadémicos 60 (28 de março de 2013)
Entrevista por:
Ana Neves