Caldas da Rainha: a cidade cerâmica depois da crise

J – A, Jornal Arquitectos

 

Por João B. Serra
Professor Coordenador (IPL), Comissário Molda, Investigador 1

Crise de um centro produtor antigo

Em 2008, após um período de estertor, a SECLA foi encerrada. Fundada em 1945, fora a maior fábrica de cerâmica de sempre das Caldas da Rainha, inovadora nos produtos e nos processos, exportadora para a Europa e América. No ano seguinte, seria a vez da Bordalo Pinheiro ameaçar o fecho. Neste caso, tratava-se de uma empresa centenária, registada em 1908 pela viúva e filho de Rafael Bordalo Pinheiro, que dominara um nicho de mercado de produtos cerâmicos marcados pela exuberância decorativa de inspiração naturalista. Houve toque a rebate na cidade e no país. Estava em risco de desaparecimento um dos mais antigos centros cerâmicos nacionais.
Trinta anos antes, o panorama da actividade cerâmica nas Caldas da Rainha era bem diferente. Vivia-se um momento de euforia, aliás extensivo às regiões do Oeste e Vale do Vouga, estimulado pela adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Nas Caldas da Rainha, cerca de 20 unidades industriais, de maior ou menor dimensão, tinham vindo juntar-se às duas anteriores. O dinamismo deste sector repercutiu-se também na criação de novas organizações, no plano institucional, económico e cultural e educativo.
Os sinais da crise, associada à mundialização da economia, à alteração dos mercados e dos fluxos, repercutiu-se pesadamente sobre as empresas de cerâmica caldenses. A princípio, houve quem julgasse tratar-se de mudança de ciclo e tentasse meios para resistir à quebra de procura. Mas depressa se percebeu que se estava diante duma alteração estrutural. Hoje, nas Caldas da Rainha, há duas fábricas em laboração: a Bordalo Pinheiro e a Molde.

 

Sobreviver à crise

A crise foi avassaladora. Poucos a tinham antecipado. A Câmara Municipal das Caldas da Rainha reagiu, quando a situação se agudizou e havia que tentar evitar que as últimas unidades fechassem portas. Efectuou aquisições de moldes e peças à Bordalo Pinheiro e à Molde, prestando-lhes desta forma auxílio financeiro indirecto. À Bordalo Pinheiro adquiriu também património edificado. Tratava-se das antigas instalações fabris e comerciais e da área social (bar e cantina dos trabalhadores), localizadas na área histórica da cidade. Esta parte do complexo mais antigo da unidade fabril já tinha sido desactivada, com deslocação da produção para a zona industrial das Caldas da Rainha – a administração da Bordalo Pinheiro projectara, entretanto, uma reconversão do seu edificado antigo num complexo hoteleiro, projecto que não obteve então o beneplácito autárquico.
A actuação da Câmara aliviou momentaneamente a pressão sobre estas duas empresas, mas não foi decisiva para lhes garantir a continuidade. O seu principal resultado foi o enriquecimento das colecções municipais, reforçado, aliás, através da compra à SECLA de um importante acervo de peças e moldes.
A Bordalo Pinheiro viria a ser alvo de uma intervenção, estimulada pelo Governo e pela banca, por parte de um grande grupo empresarial, a Visabeira, que lhe redefiniu o modelo de negócio, e a Molde, no seu processo de adaptação, cedeu o lugar dominante à terracota e ao grés, em desfavor da faiança.

 

Novas respostas

Em 2006, a Câmara criara um pequeno corpo de programação, com o objectivo de lançar um festival centrado na cerâmica. Com duas edições, em 2007 e 2008, ambas lideradas por museólogos, o projecto foi suspenso e retomado em 2014-2015, com outros protagonistas, desenho institucional, ambição e um horizonte de acção programático e garantia orçamental de cinco anos. Foi então designado Caldas da Rainha Cidade Cerâmica. No plano comunicacional tomou o nome de Molda.
O programa tem como objectivo principal fazer do conhecimento sobre o lugar da cerâmica nas Caldas da Rainha e concelhos limítrofes um recurso para a valorização do território. Assenta numa rede, articulando os nós disponíveis, consolidando o seu funcionamento numa base de partilha de meios e de objectivos.
O património histórico acumulado2 é um dos pilares desta rede. Mas é chamado a articular-se com outros pilares e não se cinge ao património consagrado pela museologia. Integra saberes e modelos de transmissão, tecnologias, edificado.
O outro pilar é a criação cerâmica, seja ela de cariz artístico, sustentada numa produção autoral, seja ela resultante das inovações tecnológicas e de design.
O inventário das oficinas de autor espalhadas pelo concelho das Caldas permitiu localizar a existência de cerca de cinco dezenas de oficinas de produção de cerâmica de autor. Na sua maioria, são criadores para os quais a venda das peças que produzem constitui a principal fonte de rendimento. O inquérito administrado revelou que também na sua maioria fizeram aprendizagem oficinal no Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica (CENCAL) e estudos superiores em escolas artísticas, como a Escola de Belas Artes e o Ar.Co de Lisboa, e, principalmente, a Escola Superior de Artes e Design (ESAD) das Caldas da Rainha.
Trata-se de um novo sector de actividade cerâmica, que excede, em amplitude e sistema de referências, a pequena estrutura de artesanato outrora vinculada à produção de peças para venda no mercado diário da cidade ou em lojas de artigos regionais.
O terceiro pilar é corporizado pela investigação nas diversas áreas disciplinares convocadas pelas instituições parceiras: a história e as ciências sociais, as ciências dos materiais e a cerâmica, a gestão cultural e a museologia, o urbanismo.
A ESAD/Instituto Politécnico de Leiria (IPL) viu aprovado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia um projecto de investigação que abarca muitas destas vertentes. Intitula-se Cerâmica, Património e Produto Sustentável – do ensino à indústria3.
O objectivo do projecto centra-se, primeiramente, em reunir e dar consistência à informação disponível, mas dispersa, que potencie soluções sustentáveis no sector da indústria cerâmica; e, em seguida, consolidando e disseminando esse conhecimento, em promover inovação, criando instrumentos para o apoio ao ensino, investigação e desenvolvimento de produtos cerâmicos sustentáveis.
Neste passo, o projecto articular-se-á, quer com o design cerâmico, quer com a constituição de novos instrumentos formativos de cariz pedagógico ou cultural4.
Na segunda fase do projecto de investigação, os novos instrumentos – sejam eles orientados para o projecto de design cerâmico ou para a formação pedagógica e cultural – serão usados e testados por alunos em unidades curriculares de projecto e outras afins. Eles deverão dar origem a propostas de produtos industriais cerâmicos sustentáveis.
Finalmente, as novas propostas de produtos cerâmicos sustentáveis serão comunicadas à indústria cerâmica na forma de desenho de projecto ou protótipos, com o intuito de concorrer para a competitividade e internacionalização da indústria nacional. Admite-se que, nalguns casos, a simplicidade dos produtos favoreça situações de auto-emprego dos seus autores, no quadro das políticas de apoios que existam para este efeito.
O projecto terá efeitos na valorização do território, a partir de recursos endógenos. A indústria cerâmica e o desenvolvimento de múltiplas actividades em torno desta produção assumem-se como uma oportunidade de exploração futura para o desenvolvimento sustentável da região, a par de outras iniciativas de inovação territorial, como sejam, além das referidas novas oportunidades de empregabilidade e auto-emprego no âmbito deste projecto, a promoção da cidade de Caldas da Rainha e sua região como uma cidade inteligente e sustentável.
O projecto dotará a cidade de novos recursos: colecções de produtos (que preencherão lacunas museológicas), conteúdos pedagógicos e culturais (que permitirão novas formas de ensino/aprendizagem e de acção cultural) modelos inovadores de ensino/aprendizagem fundamentalmente experimentais (que complementarão a oferta formativa existente), exposições temporárias e permanente (que reforçarão a disseminação do conhecimento), um centro de documentação relativo à história do processo cerâmico (dando sequência e coerência à informação fragmentária sobre o tema), workshops, conferências, etc.
Enfim, a Unesco aprovou recentemente a atribuição à ESAD/IPL de uma cátedra Unesco com a designação Gestão das Artes e da Cultura – Cidades e Criatividade, que permitirá alocar à investigação meios igualmente qualificados.
Em suma, o programa Caldas da Rainha Cidade Cerâmica dirige-se fundamentalmente ao fortalecimento de uma rede de conhecimento e criação.

 

Parceiros. Internacionalização

As primeiras parcerias foram celebradas com escolas, empresas, associações empresariais, sociedades científicas e de criativos, museus5.
Duas modalidades de participação estão ao alcance dos parceiros: a execução de parte do programa (neste caso, a entidade responsabiliza-se pela realização de algumas acções, no quadro das suas competências, protocolando as contrapartidas); e a apresentação de uma proposta de acção candidata a apoio por parte do programa (neste caso, a programação é da exclusiva responsabilidade do proponente, que, reconhecida a sua pertinência pela estrutura de coordenação, a vê inserida no programa geral e apoiada financeiramente).
O programa privilegiou duas frentes de trabalho quanto à internacionalização. Uma, a constituição de uma Associação Portuguesa de Cidades e Vilas com Cerâmica cuja escritura pública ocorreu a 17 de Abril deste ano6. A outra, a preparação e apresentação de uma candidatura das Caldas da Rainha a Cidade Criativa da Unesco, a qual deverá ter lugar em 2019.
O título de cidade criativa pressupõe que a cidade articule três condições fundamentais: um património histórico sólido e relevante na área em apreço, condições operativas para a continuidade das práticas criativas e uma estrutura de gestão e promoção experiente. Ambas as redes internacionais são relevantes para a cidade e para a cerâmica. Se a rede das cidades com cerâmica permite reforçar a escala europeia, a rede Unesco permite reforçar a relação com outras geografias, nomeadamente África e América Latina.
A cátedra Unesco, já referida, reforça este caminho.

 

Impactes nos equipamentos urbanos e no urbanismo

Rastreemos agora os efeitos previsíveis deste programa no dispositivo urbanístico, tanto na realocação e redistribuição de novos equipamentos, como na definição de novos eixos urbanísticos.
Um desses impactes será deduzido do programa museológico que está a ser elaborado para acolher as diversas colecções públicas e privadas de que a cidade dispõe7.
Mas a mais surpreendente colecção de cerâmica é a que pode ser observada no espaço público urbano e nos edifícios qualificados da cidade, que vai desde revestimentos azulejares a intervenções artísticas de grande significado e, por vezes, de considerável dimensão.
O reordenamento museográfico obrigará a uma reorganização institucional, construção de novos espaços de exposição, que nalguns casos poderão resultar da conversão de antigos espaços industriais. E, sobretudo, a um novo conceito de museu de cerâmica, para envolver todas as valências acima indiciadas.
O apoio às plataformas criativas, designadamente à actividade dos criadores independentes será conduzido através das seguintes medidas: a construção e equipamento de oficinas a que estes autores possam aceder; a contratualização com as entidades autárquicas (câmaras e juntas de Freguesia das Caldas e concelhos limítrofes) de uma rede de residências para ceramistas convidados; o estímulo a iniciativas empresariais (lojas/galerias) de venda de peças de autor; o estímulo ao surgimento de uma plataforma digital que se ocupe do catálogo e distribuição destas produções; a realização anual de uma exposição curatorial de design cerâmico nas montras da cidade; a realização anual de uma exposição organizada em modelo concept store aberta aos autores sediados no concelho; o lançamento de um roteiro digital das oficinas8.
Por outro lado, o programa Caldas da Rainha Cidade Cerâmica constituiu em 2016 o princípio de uma nova colecção, exclusivamente formada por design cerâmico internacional9.
Acrescente-se que o Projecto Cerâmico. Património e Produto Sustentável também tem reflexos nas colecções, uma vez que o seu plano de trabalhos implica a apresentação periódica dos resultados das investigações.
A Câmara Municipal das Caldas da Rainha cedeu, por isso, ao projecto parte das antigas instalações fabris da Fábrica Bordalo Pinheiro adquiridas em 2009.
O edifício situa-se num eixo estratégico que vai da Escola de Artes e Design até ao centro histórico da cidade. Praticamente contíguo ao Museu da Fábrica10, situa-se nas imediações dos museus nacionais de José Malhoa e de Cerâmica e do complexo museológico municipal Centro de Artes. Nele se encontram também os antigos Pavilhões do Parque, um edifico icónico do final do século XIX que será reconvertido numa unidade hoteleira temática que terá a cerâmica caldense como elemento inspirador11.

Este eixo definirá provavelmente um corredor criativo da cidade. Não é um sucedâneo empobrecido do passado industrial, mas uma nova oportunidade para a criação cerâmica contemporânea. 

 


Projecto CP2S Cerâmica, Património e Produto Sustentável – do ensino à indústria (CENTRO-01-0145-FEDER-23517). Professor titular da Cátedra Unesco Gestão das Artes e da Cultura, Cidades e Criatividade, do Instituto Politécnico de Leiria (IPL).

2 A produção cerâmica abarcou praticamente todas as tipologias produtivas, desde o barro vermelho à faiança e à porcelana, e percorreu todas as escalas de especificações, desde o utilitário ao decorativo e artístico. Deu azo a modelos de formação adaptados, desde a antiga transmissão de mestres a aprendizes, regulado pelo poder municipal, ao ensino operário disseminado na década de 80 do século XIX, e à institucionalização do ensino profissional e do ensino superior politécnico um século mais tarde.

3 Além da ESAD, estão envolvidos neste projecto o Centro de Investigação em Gestão para a Sustentabilidade da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do IPL, o Curso de Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar e o CENCAL.

4  A título de exemplo: constituição de colecções de máquinas das diferentes fases da indústria cerâmica, de moldes, e um inventário de práticas, fórmulas e resultados de análise de pastas utilizadas, devidamente classificadas.

5 A AptCC tem a sua sede nas Caldas da Rainha, e possibilitará que Portugal tenha assento no Agrupamento Europeu de Cidades Cerâmicas (AeuCC).

6 A ESAD, a Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro, o CENCAL, a Associação Empresarial dos Concelhos das Caldas da Rainha e Óbidos, o Museu de José Malhoa e o Museu de Cerâmica, a União de Freguesias de Nossa Senhora do Pópulo, as empresas Molde Faianças e Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, a sociedade científica Património Histórico – Grupo de Estudos, as Ligas dos Amigos dos Museus, duas associação de criativos, a Destino Caldas (Silos – Contentor Criativo) e a Caldas Design Week, e as duas entidades que, no âmbito da acção cultural municipal, gerem os museus de escultura municipal e o centro cultural, o Centro de Artes e o Centro Cultural e de Congressos.

 A primeira colecção pública de cerâmica caldense foi formada no Museu de José Malhoa (fundado em 1933), mostrada em 1963 e finalmente integrada em museu próprio, o Museu de Cerâmica, em 1982. Há diversas instituições detentoras de colecções museológicas, como a Câmara Municipal, ou a Fábrica Bordalo Pinheiro. Existem igualmente colecções particulares de louça caldense, uma delas de grande projecção.

8 Ainda neste âmbito da valorização da cerâmica de autor, o programa prepara um concurso para aquisição anual de cinco peças por parte da Câmara Municipal para as suas ofertas de prestígio, podendo cada uma das peças seleccionadas ter uma edição máxima de 10 exemplares.

9 Com curadoria do designer e professor Fernando Brízio, teve uma primeira exposição em 2016. A gestão da colecção prevê novas aquisições, itinerâncias e um programa de estudos avançados em torno das suas peças, autores e tendências.

10 O complexo museu/loja/outlet da Fábrica de Faianças também deverá ser a breve trecho alvo de intervenção requalificadora por parte da gestão da Visabeira.

11 O projecto de nova unidade hoteleira – Montebelo/Bordalo Pinheiro –, em fase de aprovação, deverá entrar em obra até ao final do corrente ano.

 

(Consulte aqui o artigo na integra)

 

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