Caso 1: O véu que cobre uma história

Autor: Sónia Cunha

Gabinete de Marketing Internacional, Politécnico de Leiria

Referir este caso: Cunha, S. (2018). O véu que cobre uma história. In R. Cadima, I. Pereira, M. Francisco & S. Cunha (Coords.). 15 histórias para incluir. [Online]. Politécnico de Leiria: Leiria.

Para começar

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade manifesta-se na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o género humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.” (UNESCO, 2002:3)

O contexto social e económico atual, vivido em torno da problemática dos migrantes e refugiados, põe esta questão na ordem do dia e desafia a humanidade a viver no seu quotidiano situações onde a diferença cultural está patente seja ela de ordem política, familiar ou religiosa. De acordo com Michel Godet e Jean-Michel Boussemart, citados por Bastos e Albuquerque (2018), “Em 2050, a Europa poderá estagnar à volta de 500 milhões de habitantes e perder 49 milhões de pessoas em idade de trabalhar no estrato dos 20-64 anos. Serão precisos braços e cérebros para compensar estas perdas de ativos.”

Portugal é o quinto país mais envelhecido do mundo e “enfrenta um problema de défice demográfico que é hoje uma emergência”. Para tal, será certamente necessário desenvolver políticas de integração e consolidar o trabalho de acolhimento de várias populações migrantes.

Para ler

O meu nome é Ana e estudo artes numa escola do Porto. Gosto do meu curso e da possibilidade que a escola me dá em conhecer pessoas de todo o mundo. Tenho uma turma multicultural e no meu grupo de trabalho tenho uma colega do Irão, a Berika. Não foi um contacto fácil à primeira vista, pois ela é uma pessoa fechada, mas depois, com o tempo fui aprendendo a conhecê-la melhor. A sua história no Porto começa com o fim da sua licenciatura no Irão.

A Berika queria muito fazer o mestrado fora do seu país, e depois de muito google e envio de emails, acabou por eleger Portugal como o seu study abroad destination e acabámos no mesmo curso, Artes Plásticas, fazendo ela hoje parte da comunidade de estudantes internacionais da escola.

Contou-me que quando soube da sua admissão sentiu borboletas na barriga. Ansiosa por experimentar uma nova cultura, receosa por não saber como seria aceite. Afinal é muçulmana, enquanto cerca de 80% da população portuguesa se identifica com religião católica. Dúvidas assaltavam-lhe a mente: Quantos estudantes muçulmanos haveria? E dos países árabes?

Quando cá chegou percebeu rapidamente que fazia parte de uma minoria e a pressão de se sentir diferente foi quase inevitável. E os primeiros embates logo se fizeram sentir. E eu como testemunha. É verdade!

Numa aula de História das Ideias, o professor pediu para nos juntarmos em grupos de 3 para desenvolver um projeto. Como normalmente faço o trabalho com a Leonor, amiga de longa data, que não estava nesse dia, decidi convidar a Berika para se juntar ao grupo, pedido esse aceite de imediato. No dia seguinte, encontrei-me com a Leonor, e no meio de tantos assuntos, veio à baila a questão do trabalho de grupo para a cadeira da História das Ideias e contei-lhe que a Berika estava no grupo.

– Quem???? A do lenço??? – pergunta-me ela incrédula.

– Sim, a Berika. – respondi-lhe admirada.

– Mas porquê? Não havia outra pessoa? – continua ela.

– Mas qual é o problema Leonor? Não estou a perceber… – pergunto já chateada.

– Não estás a perceber? Não vês as notícias? Aquele lenço… desconfia Ana, desconfia… tu tens sempre a mania de confiares em toda a gente e agora é preciso ter muito cuidado com quem andamos.

– Leonor, tu nunca falaste com ela. Nem sequer lhe estás a dar uma oportunidade de a conhecer melhor. Estás a julgá-la por ela usar o hijab?

– O quê? O que é isso? Nem sei do que falas.

– É o véu ou lenço. Aprende: a palavra é de origem árabe e por isso utilizada em todo o mundo islâmico e quer dizer “cobertura”. Se tivesses falado um pouco com ela, ias perceber, e ganhavas mais um pouco de cultura, não?

– Ah, ah, ah… Pois não sei… O que sei é que o uso do lenço foi proibido em alguns países, tipo a França e Bélgica. Alguma razão deve haver, não te parece? E mais, se está em Portugal não precisa de o usar. Segue as regras do país de acolhimento… a mim parece bastante lógico.

– Mas onde vamos com esta conversa? Não a queres no grupo, é isso? Achas que ela vai detonar uma bomba? Boom! Achas que pode estar a passar informação do nosso trabalho aos outros grupos? – pergunto-lhe em tom irónico.

– É isso mesmo! Não vou fazer trabalho com ela. Escolhe, ou ela ou eu. Prefiro fazer com portugueses e para mais não me apetece estar constantemente a falar inglês, fixar os olhos naquele ar sério de quem raramente ri.

Mau. Por esta é que eu não estava à espera. Então a minha amiga de sempre, aquela que me acompanha desde o secundário está a fazer-me chantagem? Então e agora?

Fiquei sem saber o que fazer… dizer à Berika que afinal não dava para ficar no grupo? Não lhe podia fazer isso! Ainda no outro dia me senti impotente perante o desabafo da Berika:

– Ana, o Islão faz parte de quem eu sou. Mas não consigo evitar sentir pressão. Sentir que estou a ser julgada com base em como eu sou ou visto. Sinto que não me posso dar ao luxo de ter um dia ruim, com medo de generalizações.

E ela tinha razão. Eu bem via os olhares dos outros. E não me posso esquecer daquele dia em que um estudante a abordou em tom jocoso e perguntou:

– Olha lá, em algum momento podes tirar essa cena?

– Eu não tomo banho com isto – respondeu ela meio apanhada de surpresa.

As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e eu ali sem saber muito bem como consolá-la. E ela mesmo assim recompôs-se e disse-me:

– Eu já percebi que a escola tem estudantes de origens muito diversas e eu sei que muitos deles não têm grandes populações muçulmanas nos seus países. Sei que muitos nem sequer viram um muçulmano e são aguçados pela curiosidade e fazem-me perguntas loucas, do tipo “Ouvi dizer que os homens podem ter quatro esposas …”. Mas eu tento responder porque é uma maneira de eu também passar uma mensagem sobre a minha identidade cultural e religiosa e desmistificar algumas questões. Mas gosto de sentir que as pessoas estão realmente interessadas. Não estão a gozar ou a julgar. Às vezes sinto mesmo a falta de poder estar com alguém que vive as mesmas coisas. Sair em grupo com mais muçulmanos, ir a eventos e até mesmo rezar…

Para equacionar

Como integrar estes casos?

  • Desmistificar o uso do lenço
  • Diálogo intercultural
  • Acolhimento de minorias
  • Apoio institucional
  • Papel de cada indivíduo
  • Regras da comunidade de acolhimento ou da cultura nativa

Para debater

1. Colocando-se no papel da Ana o que faria?

A nossa vida confronta-nos diariamente com a tomada de decisões e algumas delas nada fáceis. Estão envolvidos neste caso valores como respeito, tolerância, liberdade. Mas também existe uma relação longa de amizade.

O que faria se fosse a Ana? Tentaria convencer/argumentar com a Leonor a fazer o trabalho a 3 ou seguiria apenas com a Berika e fazia o trabalho a duas?

Já enfrentou situações semelhantes?

2. Quem pode e como mediar as relações interculturais?

Numa era de globalização é cada vez mais comum a presença de diferentes nacionalidades, etnias, religiões, etc., em diversos cenários, sejam eles, de natureza profissional, académica ou social.

Faz sentido existirem mediadores, equipas multidisciplinares, grupos sociais, para gerir estas relações?

Se sim, quem são estas pessoas e onde devem estar integradas? Que ações devem ser tomadas para promover a educação para a diferença?

3. Como conciliar a pluralidade cultural e as diferenças individuais?

No mundo global tem-se assistido ao aumento de tensões sociais e à consequente necessidade do indivíduo se refugiar com aqueles com quem se identifica.

Como mediar e gerir estes processos de interação?

Quando se fala de diversidade cultural, falamos (obrigatoriamente) em conflito?

4. Como desmistificar o uso do lenço na nossa comunidade?

O uso do lenço é um tema controverso e muitas vezes é associado a atos de terrorismo, ou de comportamentos radicais. Em alguns países o seu uso foi condicionado ou proibido ( Jornal Público, 14 de março de 2017). De facto, nesta história, o lenço é inibidor de diálogo.

Deverão ser promovidas ações de esclarecimento sobre o uso do véu ou, pelo contrário, deverá ser proibido (por quem e em que condições) o seu uso em público?

5. Estão as instituições e os indivíduos preparados para acolher as minorias?

“Portugal é o terceiro país mais pacífico do mundo, num ranking de 163 países (…) tendo subido duas posições este ano” (Jornal de notícias, 01 de junho de 2017).

Sendo Portugal considerado um dos países mais hospitaleiros e agora o terceiro mais pacífico, significará isto que estamos naturalmente preparados para a diversidade? Ou ainda há muito a fazer no campo da intervenção social no que respeita a questões de preconceito e acolhimento de minorias?

Se há diferenças culturais na sala de aula, é melhor falar sobre elas… fazer perguntas.
Todos saem a ganhar quando diferentes culturas interagem e se conhecem.Manuel Teixeira

Para reter

Não existindo um desfecho real para esta situação, permanece o desafio às instituições, à comunidade e aos indivíduos. Contudo ficam algumas recomendações baseadas em situações reais que, na problemática, se assemelham com a história apresentada.

Recomendações para este caso:

Recomendação 1

Promover debates, discussões na comunidade educativa sobre diferenças culturais aumentando a consciencialização para a responsabilidade social. A Ana, em conjunto com a Berika podem desenvolver iniciativas que promovam a divulgação da sua cultura, inclusivamente, sobre os diferentes significados da indumentária típica dos países islâmicos, atividades religiosas, etc.

Recomendação 2

Ouvir o feedback de quem está “em minoria” e perceber onde e como se pode atuar.

Recomendação 3

Desenvolver programas de rede família-escola-sala de aula e mobilizar outros players para desenvolvimento de ações partilhadas com as instituições de ensino superior.

Recomendação 4

Organizar núcleos, academias ou outros grupos onde na sua composição estejam estudantes de nacionalidades diferentes que atuem como embaixadores/ buddies/ mentores, e que tenham vivido na primeira pessoa as mesmas dificuldades e possam ajudar à integração da Berika com o seu testemunho e experiência.

Recomendação 5

A Berika, com a ajuda da Ana, pode pesquisar e localizar a existência de uma comunidade muçulmana no Porto, procurando quer um espaço de oração, quer motivando o envolvimento dessa comunidade para uma participação nas atividades/eventos da comunidade educativa.

Recomendação 6

Dar exemplos à Leonor de outras situações iguais à que está a viver, onde uma decisão baseada num preconceito acabou por se revelar precipitada, pois no final a diversidade cultural potenciou uma aprendizagem mais rica.

Para consultar

Referências

Bastos, J. e Albuquerque, R. (2018, fevereiro, 18). Europa a caminho do “suicídio demográfico”. Expresso [Online]. https://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-02-18-Europa-a-caminho-do-suicidio-demografico-1#gs.IY5vp3I

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) da UNESCO. Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, de 2 de novembro de 2001. http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf

Sugestões de pesquisa

Coelho, M. H. (2008). A Construção histórica da multiculturalidade. In Portugal: percursos de interculturalidade, Volume I – Raízes e Estruturas. http://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/182327/1_PI_Cap2.pdf/2571d4a8-e5f3-4f25-b9bf-ec5c6748db9c 

Caldas, A. (2008) A biologia da multiculturalidade. In Portugal: percursos de interculturalidade, Volume I – Raízes e Estruturas. http://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/182327/1_PI_Cap1.pdf/ff2b14ac-b218-4927-ab83-a1b0da412b06

Direção-Geral da Educação (2018) Educação Intercultural. [website] http://www.dge.mec.pt/educacao-intercultural

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Observatório da Responsabilidade Social e Instituições de Ensino Superior (ORSIES) http://orsies.forum.pt/