Caso 14: Fotografia para TODOS: um mito ou uma realidade?

Autores: Andrea Gurgel1 e Carla Freire2

1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2 Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, Instituto Politécnico de Leiria

Referir este caso: Gurgel, A. & Freire, C. (2018). Fotografia para TODOS: um mito ou uma realidade? In R. Cadima, I. Pereira, M. Francisco & S. Cunha (Coords.). 15 histórias para incluir. [Online]. Politécnico de Leiria: Leiria.

Para começar

Nos dias de hoje vivemos numa sociedade essencialmente visual. São vários os estímulos visuais que nos bombardeiam diariamente, dos quais, mais de 80% são assimilados pelo nosso sistema visual (Corsi, 2001).

De acordo com a ACAPO (2018) a deficiência visual, que pode compreender a cegueira e a baixa visão, é uma condição que afeta a capacidade da pessoa nos mais diferentes domínios do dia-a-dia. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2018) estima-se que 253 milhões de pessoas vivem com deficiência visual, existindo em Portugal 23% de pessoas com dificuldades de visão (Instituto Nacional de Estatística, 2012).

A imagem tem um papel fundamental na sociedade, cultura e comunicação. Ainda que a pessoa com deficiência visual, nomeadamente com cegueira, tenha dificuldade na perceção dos elementos gráficos, é possível através de estímulos sensoriais criar imagens mentais. Estes estímulos podem ser ativados, por exemplo, através do tacto por meio de adaptação de materiais físicos ou por meio de elementos auditivos. Ao adicionar a componente tecnológica, a pessoa com deficiência terá mais acesso ao mundo visual, não só como recetora da informação, mas também como produtora das suas próprias imagens.

Para ler

A Andrea é formadora na área de comunicação visual e desenvolve, habitualmente, formações na área da fotografia para principiantes, onde aborda vários conceitos relativos à imagem, funcionalidades da máquina fotográfica, planos fotográficos e respetivo enquadramento, luminosidade, etc.

Para este ano, foram previstas várias oficinas, cada uma com o número máximo de 14 participantes.

No dia em que a Oficina tem início, a Andrea depara-se com a Joana, uma participante de 27 anos, com cegueira congénita.

A Andrea, ao falar com a Joana, questiona-a sobre as motivações para a sua participação na oficina, uma vez que se trata de uma área essencialmente visual. Pelo que a Joana, responde que sendo engenheira informática e desenvolvendo trabalho na área da Web, sente necessidade de compreender mais sobre a imagem, uma vez que o ambiente online funciona muito com base na componente visual. Além disso, gostaria, também, de tirar as suas próprias fotografias e publicá-las no seu blogue.

A Andrea fica receosa pela forma como vai lidar com a situação. Esta formação tem a duração de 4 semanas, decorrendo aos sábados de manhã e conta com 12 participantes. Como tal, questiona-se como vai gerir as aulas, uma vez que todos necessitam de apoio e prevê que esta situação requeira mais tempo e materiais diferentes.

Para equacionar

Como proceder?

  • Colocar requisitos para a formação
  • Considerar reações dos restantes participantes
  • Criar formações para públicos específicos
  • Que estratégias para ensinar fotografia a diferentes públicos

Para debater

1. Reações dos participantes

Uma vez que estão a ser introduzidos ao tema, sendo o tempo limitado e tendo pago uma inscrição os participantes esperam atenção mais personalizada. Existindo uma colega cega, que provavelmente necessita mais tempo, como irão os outros participantes reagir?

2. Literacia visual para todos

Será que para tirar fotografias é preciso ter presentes os aspetos técnicos e eventualmente estéticos? Será que para uma pessoa que nunca viu, é importante ter a noção de cor, de enquadramento, da luminosidade, etc.?

3. Estratégias a adotar

De que forma se pode adaptar uma oficina de fotografia a pessoas cegas? Como pode a Andrea explicar à Joana o enquadramento de uma fotografia? Que tipo de materiais se podem utilizar para uma melhor compreensão dos tópicos a abordar na Oficina?

4. Processo de inscrição

O que deve a Andrea fazer? A Andrea deve aceitar a inscrição da Joana? Deve existir algum requisito? Estarão todas as pessoas habilitadas para esta atividade?

 

Criar dispositivos de apoio próprios para a oficina, principalmente no enquadramento. Em aula prática dentro do laboratório, um “jogo da velha” em madeira poderia ser aplicado sobre uma superfície para que a pessoa com deficiência visual compreendesse a regra dos terços.
Paulo Eduardo Mauá

Os tópicos apresentados são importantes para a fotografia, mas será que não podemos pensar numa nova forma de fazer fotografia, a partir da concepção do que as pessoas cegas querem com a fotografia? (…) acredito que é necessário respeitar o local de fala de cada um e, para isso, consultar e tentar entender as concepções de mundo das pessoas com deficiência visual.
Valéria Abdalla

Considero que o facto de ter incapacidade visual, não significa que necessite de mais atenção que os outros formandos. Ela já aprendeu a “ver o mundo” à sua maneira, e esta forma de usar os outros sentidos (…) poderá ser até uma mais-valia para a formadora e para os outros formados.
Gabriela Lima

Para reter

Considerando que cada caso é um caso e que as soluções adotadas para uma situação poderão não ser as indicadas para outras, deixamos um possível desfecho, baseado numa situação real.

Colocar requisitos numa formação na área da fotografia poderia ser uma forma cómoda de evitar lidar com este tipo de situações. No entanto, é importante analisar bem todas as partes que constituem um dado problema. É essencial fazer um diagnóstico do que existe, das dificuldades, das necessidades e das motivações que uma pessoa possa ter. Este estudo permitirá determinar se existem condições para tornar um determinado ambiente/contexto inclusivo.

Neste sentido, a Andrea ouviu bem a Joana, assim como os restantes participantes da Oficina, o que lhe permitiu conhecer melhor os seus estudantes e o que pretendiam com a formação. Numa fase inicial, alguns colegas mostraram-se um pouco apreensivos, na medida em que procuravam conhecer mais sobre fotografia e tinham receio que a Andrea dedicasse mais tempo à Joana do que a eles próprios. Após uma discussão em grupo, todos os elementos assumiram o compromisso de avançar com a Oficina e ajudarem-se mutuamente, procurando formas de explicar conceitos essencialmente visuais.

Tornou-se necessário adaptar a Oficina para que ficasse acessível a pessoas cegas, foram encontradas estratégias táteis (por exemplo, molduras com elásticos para explicação da regra dos terços, imagens com relevo a demonstrarem os planos, etc.) e sonoras (por exemplo, o som de disparo da câmara fotográfica) que permitiram à Joana compreender os conceitos e colocar em prática os conteúdos aprendidos.

A maioria das pessoas nem sempre tem em conta aspetos técnicos ou estéticos no ato de tirar fotografias, limitando-se, muitas vezes, a fazer registos do que veem para posteriormente recordarem e para partilharem. Se as pessoas cegas não veem, porque será que gostariam de aprender fotografia? Muitas vezes pelos mesmos motivos das pessoas que não têm dificuldades visuais, para partilharem determinados momentos com outras pessoas, sejam familiares ou amigos. Neste sentido, é importante que TODOS possam ter acesso a alguns conceitos básicos ao nível técnico e estético, que lhes permitam tirar boas fotografias para mais tarde recordarem e partilharem.

Moral da história:

A Oficina foi um pouco trabalhosa, na medida em que exigiu muito de todos, não só da Andrea, mas também dos participantes. Para encontrarem estratégias e técnicas para explicarem os conceitos à Joana, foi necessário aprofundarem os conhecimentos na área da fotografia. Neste sentido, as aprendizagens em aula, deram lugar a pesquisas autónomas fora do espaço formal da Oficina, o que contribuiu não só para uma melhor compreensão das questões técnicas e estéticas, mas também do conceito de inclusão.

Para consultar

Referências

ACAPO. (2018). Glossário. http://www.acapo.pt/deficiencia-visual/glossario

Corsi, M.,G.,F. (2001). Visão subnormal: intervenção planejada. São Paulo: M.G.F. Instituto Nacional de Estatística (2012). Censos 2011 Resultados Definitivos – Portugal. Lisboa: INE I.P.

OMS (2018). Visual impairment and blindness. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs282/en/

Sugestões de pesquisa

Congresso de Acessibilidade (2017). Teco Barbero, Fotógrafo, Palestrante e Aux. De Eventos [Página WEB]. Consultado a 30/05/2018 a partir de http://www.congressodeacessibilidade.com/speaker/teco-barbero/

Maia, J. (n.d.). Fotografia Cega [Blogue]. http://fotografiacega.com.br/

Mattos, L. K. de; Zanella, A. V; Nuernberg, A. H. (2014). Entre olhares e (in)visibilidades: reflexões sobre a fotografia como produção dialógica. In: Fractal, Rev. Psicol., v. 26 – n. 3, p. 901-918, Set. / Dez. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/895

Jardim, J. & Walter, C. (Diretores) (2001). Janela da Alma [Documentário em vídeo]. https://www.youtube.com/watch?v=_I9l7upG0DI

Sugestões de leitura

Alves, J. F. (2008). No meio do caminho, tinha um obstáculo: a leitura de imagem para (e com) o outro. In: Martins, L. A. R.; Nascimento, G.P.; Pires, J. (Org.). Políticas e Práticas Educacionais Inclusivas. Natal/RN: EDUFRN, p. 367-380.

Freitas, A. G. (2014). Não ver e ser visto: Uma experiência entre Pontos de Cultura mediada pela fotografia (Especialização em Acessibilidade Cultural). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Museu de Arte Moderna (2015). Programa Igual Diferente. São Paulo: Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura e Museu de Arte Moderna de São Paulo.