Caso 8: Cores, aromas e outras diferenças culturais

Autor: Sónia Cunha

Gabinete de Marketing Internacional, Politécnico de Leiria

Referir este caso: Cunha, S. (2018). Cores, aromas e outras diferenças culturais. In R. Cadima, I. Pereira, M. Francisco & S. Cunha (Coords.). 15 histórias para incluir. [Online]. Politécnico de Leiria: Leiria.

Para começar

O mundo de hoje faz um apelo premente à multiculturalidade. Teremos de aprender a lidar com os desafios que o convívio com diferentes culturas sugere, seja em que contexto for. Portugal tem na sua história uma tradição de abertura ao mundo sendo a nossa hospitalidade reconhecida. Os números são disso prova. Em 2017, Portugal recebeu 24,1 milhões de hóspedes, dos quais 3,4 milhões ficaram em alojamento local, representando cerca de 14% dos turistas (INE, 2018). O mercado de alojamento de curta duração promovido por plataformas digitais amplificou a especulação imobiliária provocando a expulsão dos habitantes do centro das cidades, nomeadamente Porto e Lisboa.

A valorização do mercado imobiliário tem consequências para pessoas com empregos estáveis, mas atinge com maior gravidade a população mais vulnerável. O relatório da Amnistia Internacional (2018) dá conta da discriminação de minorias no acesso à habitação e apela à criação de novos programas de habitação. Muito embora se reconheça a importância do Turismo na economia, a habitação é um direito fundamental constitucionalmente consagrado e por isso é necessário que as cidades possam ser habitadas e não apenas visitadas “promovendo a inclusão social e territorial e as oportunidades de escolha habitacionais” (XXI Governo Constitucional, 2018).

Para ler

A situação apresentada neste caso foge aos cânones habituais das personagens fictícias e começa com um artigo da imprensa britânica para ilustrar uma das problemáticas associadas ao mercado imobiliário.

Um dos maiores empresários do ramo imobiliário do Reino Unido proíbe os seus parceiros de negócio de arrendarem casas a pessoas de cor “por causa do cheiro de caril“. Fergus Wilson deu instruções para não alugar casas também pais solteiros, trabalhadores de baixo salário… e canalizadores. Fonte: Independent (28/03/2017)

Relacionado com este assunto, outro artigo refere:

Fergus Wilson, de 70 anos, não se arrependeu quando foi questionado sobre a sua proibição. O proprietário que já teve até 1.000 propriedades em Kent, disse: “Para ser honesto, estamos sobrecarregados com pessoas de cor. É um problema com certos tipos de pessoas de cor – aqueles que consomem caril – e que se entranha na alcatifa. Temos que usar produtos químicos para tirar o cheiro. Em casos extremos, precisa-se substituir a alcatifa.”  Fonte: Sun (28/03/2017)

Várias foram as vozes de indignação que se manifestaram contra o empresário como a HOPE not hate ou a GenerationRent alegando que:

Não se pode tratar ninguém assim, negando um lugar para viver baseado na cor da pele (…) Esta é a face inaceitável da crise imobiliária e por isso Sr. Wilson deve enfrentar consequências jurídicas, encorajando a Comissão de Igualdade e Direitos Humanos a investigar mais uma vez com urgência.”  Fonte: Sun (28/03/2017)

A crise da habitação é uma crise mundial, que atinge todas as classes e grupos, com particular incidência nos mais frágeis e mais vulneráveis: idosos, emigrantes, desempregados. As Nações Unidas já emitiram comunicado:

De acordo com o relator especial das Nações Unidas sobre o direito à habitação: a especulação financeira levou a uma crise de habitação global “insustentável”. Fonte: Sun (28/03/2017)

Em Portugal, com o advento do alojamento local, das grandes plataformas web de arrendamento temporário, o mercado imobiliário inflacionou ainda mais, impedindo arrendamentos mais longos e mais acessíveis. Os portugueses têm maiores rendimentos na plataforma Airbnb do que os espanhóis e italianos. Acima de Portugal só o Japão ganha mais.

Perante a situação, assistimos a uma espécie de triângulo das Bermudas do mercado imobiliário:

1. População: Os mais idosos queixam-se de abuso no aumento das rendas, da falta de proteção perante os mais fortes, 64% dos estudantes queixa-se das residências e casas alugadas, as pessoas de cor são impedidas de alugar casas pelo cheiro, os inquilinos que ainda pagam rendas (consideradas) baixas são despejados e a etnia cigana pede por condições dignas de habitação.

2. Proprietários: Os proprietários queixam-se que não podem continuar a assistir ao mercado e manter as rendas baixas, sem atualizações. Além disso, veem no alojamento local uma maneira mais fácil de rentabilizar o investimento, mais segura e menos problemática do ponto de vista das condições da casa e da sua manutenção.

3. Governo: O Poder Público observa a meia distância os players do mercado e vai sofrendo pressões dos grandes grupos de investimento, ao mesmo tempo, que os cidadãos inauguram movimentos e associações para verem as cidades serem-lhes devolvidas a preços comportáveis de arrendamento.

Para equacionar

Mercado imobiliário

  • Características e necessidades da população
  • Direitos e deveres dos proprietários
  • Prós e contras do turismo
  • Papel do governo
  • Ausência de medidas legislativas
  • Zonas desertificadas e sobrepovoadas

Para debater

1. Cores e aromas versus branco e inodoro

Conceitos como “higiene”, “limpeza”, “organização”, “estética” e até a forma como o indivíduo se relaciona com o espaço envolvente, varia consoante a cultura, crença ou ideologia.

Se fosse o Sr. Wilson, como agiria? Alguma vez viveu uma situação semelhante, de partilha ou aluguer de espaço, com pessoas com hábitos de organização diferentes dos seus? Como reagiu?

2. Turismo: carrasco versus salvador

Nas questões em torno da habitação encontramos várias notícias como por exemplo no expresso online o artigo “Que Lisboa é esta” de 16-09-2017 ou no observador o artigo “Ilhas típicas do Porto ganham nova vida com turistas e estudantes” de 1-07-2017.

Assim, levanta-se a questão: assumirá o turismo o papel de carrasco ou de salvador?

3. Sobrepovoação versus desertificação

Enquanto mais de metade do território português “está em risco de desertificação”, a outra metade vai sendo expulsa sub-repticiamente das cidades, face aos preços elevados ou simplesmente por segregação residencial de base étnica/racial…

Para quem ficarão as cidades? Para quem ficará o interior?

4. Habitação social: sim ou não?

O prémio Pritzker de 2016 foi atribuído ao chileno Alejandro Aravena, colocando de novo a habitação social nas bocas do mundo pela sua dedicação a projetos de cariz humanitário, com forte participação comunitária.

Deverá continuar a apostar-se na habitação social? Se sim, em que moldes… Se não, quais as alternativas aos preços praticados?

O “caril” é apenas uma questão de racismo e segregação. Porque uns usam caril, outros assam sardinhas, e outros usam essências mais exóticas para perfumar a casa. Independente da cultura, religião e nacionalidade (…) devem ser respeitadas as regras de vivência em comunidade.
Gabriela Lima

(…) Para quem fica o interior? Para quem tem hipótese e oportunidade de lá se estabelecer, para quem tem contrapartidas financeiras, logísticas, etc., para quem se cansou de viver nas cidades e para quem procura qualidade de vida. E ainda para quem não se consegue, financeiramente, manter nas grandes cidades.
Marta Costa

Para reter

Em termos gerais…

O direito à habitação está consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. Faz parte dos direitos sociais e compete ao Estado assegurar a concretização deste direito. O direito à habitação está igualmente consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e na Carta Social Europeia, estando Portugal vinculado a ambas.

A realidade está longe de providenciar a todos habitação digna e quem precisa de casa fica muitas vezes refém dos proprietários ou dos bancos. Esta temática ganha particular incidência quando o mercado são as grandes cidades aumentando o perigo de exclusão e/ou segregação étnico-cultural e outras. Têm sido vários os debates em torno das questões da habitação, adensado pelo desenvolvimento acentuado do turismo e, por isso, deixaremos no desfecho deste caso, documentos, opiniões, movimentos, que deixam antever alguns caminhos na tentativa de mitigar a precariedade a que se assiste atualmente.

Em relação ao caso…

Sobre o caso inglês e acerca das declarações proferidas por Fergus Wilson a Comissão de Igualdade e Direitos Humanos foi chamada a intervir e levou o proprietário a tribunal. Tradução do original:

As revelações no início deste ano levaram a Comissão de Igualdade e Direitos Humanos a iniciar um processo legal e disse que as ações de Wilson negavam aos cidadãos indianos e paquistaneses a hipótese de viver nas suas propriedades. Recusar-se a alugar uma casa com base na raça é ilegal. O tribunal concedeu medida liminar contra suas regras, e se Wilson obedecer, não serão tomadas nenhumas medidas adicionais. Se ele persistir com a política, poderá ser multado.

Ainda de acordo com Rebecca Hilsenrath, Chefe Executiva da Comissão para Igualdade e Direitos Humanos:

Saudamos esta proibição pelo tribunal da política discriminatória do Sr. Wilson. As nossas casas são fundamentais para nossas vidas privadas e para quem somos. A negação de uma casa baseada em critérios como raça ou cor é conduta abominável e que não aceitamos na sociedade de hoje. Ainda há profundas desigualdades no nosso país, (…) e infelizmente algumas das causas dessas desigualdades foram ilustradas pelos comentários de Wilson durante o verão. No entanto, hoje, estamos um passo mais perto para uma Grã-Bretanha mais igualitária.

Esta é sem dúvida uma ótima frase para desfecho deste caso e na caminhada para uma sociedade mais inclusiva!

Fonte: Daily mail, artigo “No Indians or Pakistanis due to the curry smell” de 8-11-2016.

Para consultar

Referências

Amnistia internacional (2018, fevereiro 23). Relatório Anual 2017/18 da Amnistia Internacional [online]. https://www.amnistia.pt/portugal-deveresolver-outra-forma-as-condicoes-habitacionais-inadequadas-grupos-vulneraveis-reforcar-acolhimento-refugiados/

INE (2018). Estatísticas do Turismo – 2017. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=320462327&PUBLICACOESmodo=2

XXI Governo Constitucional (2018, abril 23). Relatório da consulta pública da Nova Geração de Políticas de Habitação. República Portuguesa https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/documento?i=relatorio-da-consulta-publica-da-nova-geracao-de-politicas-de-habitacao

Sugestões de pesquisa

Relatórios: Relatório sobre Direito à Habitação apresentado pelo Conselho dos Direitos Humanos em Genebra; Nova Geração de Políticas de Habitação

Artigos e Debates: Nova geração de políticas de habitação; Negócio de Turismo no Interior; Prós e Contras

Sites e Organizações: Portal da habitação; Citylab