Caso 5: Comércio online? É só um clique…

Autores: Manuela Francisco1 e Norberto Sousa2

1 Unidade de Ensino a Distância, Instituto Politécnico de Leiria
2 ComAcesso

Referir este caso: Francisco, M. & Sousa, N. (2018). Comércio online? É só um clique… In R. Cadima, I. Pereira, M. Francisco & S. Cunha (Coords.). 15 histórias para incluir. [Online]. Politécnico de Leiria: Leiria.

Para começar

O comércio online ou eCommerce diz respeito a qualquer tipo de atividade económica realizada por via eletrónica (Rolf, 1997). Apesar de ser hoje utilizado pela maioria das empresas, em todo o mundo, a legislação existente incide fundamentalmente na regulamentação das atividades económicas (DeLone & McLean, 2004) e, mais recentemente, na proteção de dados dos utilizadores.

Em questões de acessibilidade, a legislação portuguesa, de acordo com a Diretiva Europeia 2016/2012 e com a RCM nº 91/2012, define que a Administração Pública está obrigada a cumprir o nível de conformidade duplo “A” das diretrizes de acessibilidade WCAG. Contudo, se nem todas as instituições públicas, estão a cumprir com estes requisitos, poder-se-á ter uma ideia do cenário relativo à acessibilidade no comércio online. Apesar de muitas atividades económicas serem de interesse público, a maioria dos serviços e websites não são acessíveis, conforme Gonçalves, Martins & Branco (2014).

Considerando que pessoas com algum tipo de incapacidade ou deficiência, nomeadamente ao nível da visão, sentem dificuldades em realizar compras em espaços físicos (ex. falta de etiquetas em Braille e de textos ampliados), a web, pelo seu potencial inclusivo e capacidade de interoperabilidade entre diferentes tecnologias, deveria ser uma alternativa eficaz e eficiente para todos.

Para ler

Sou o Filipe, tenho 43 anos e já corri meio mundo… mas o que me caracteriza mesmo é a imensa paixão por fotografia. Sempre fiz registos de eventos tradicionais como casamentos e batizados. Inicialmente fotos, depois fotos e vídeo, hoje em dia é mais a fotorreportagem. A parte mais complexa é sempre a das provas, uma vez que os clientes não são apenas os “protagonistas” mas também os convidados – muito mais difícil de chegar. Mas graças aos avanços tecnológicos relacionados com a internet, criei uma “webstore” e tem funcionado lindamente.

O processo é simples e seguro. Crio o álbum do cliente, protegido com uma palavra-chave, e envio os dados de acesso por email. O cliente, por sua vez, encaminha os dados para os seus convidados. Todos acedem às fotos, adicionam à lista de compras e finalizam com pagamento online. Tem corrido muito bem mesmo, aliás, aumentei o volume de vendas! Mas, na semana passada recebi a seguinte mensagem:

Caro Filipe,

Tentei aceder ao álbum de fotografias com os dados que a Sofia e o Martim me enviaram e fiquei extremamente descontente com o cenário. Por acaso o Filipe já ouviu falar em acessibilidade na web? Estou em crer que não. E é por considerar que é uma questão de ignorância e não de negligência consciente que lhe escrevo e não avanço com uma denúncia na Defesa do Consumidor. 

Tenho baixa-visão e uso software para ampliação e leitor de ecrã. Quando tentei entrar no álbum foi uma aventura! Foi um saltar constante entre os softwares que utilizo… Primeiro encontrar o campo da senha, depois de entrar deparei-me com fotos que, devido à ampliação que necessito para ver o que está no ecrã, não consigo ter a perceção total da foto. Mais uma vez ativei o leitor de ecrã para ver se tinha algum texto alternativo com indicação das pessoas que estavam nas fotos e… nada. 

Assim, se o Filipe pretende comercializar as fotos online, deverá ter em consideração que os seus clientes podem ter problemas de visão e têm, tal como todos os outros, direito a adquirir as fotos. 

Cordiais cumprimentos, M.

Fiquei estupefacto com esta mensagem!

Nunca me passou pela cabeça que “uma pessoa que não vê” tivesse interesse em adquirir fotos. Aliás, quando pensei avançar com a webstore fiz pesquisas para encontrar a melhor solução e nenhuma falou em acessibilidade, como por exemplo neste site “Website Design Tips for Wedding Photographers” ou nos tops de melhores sites nesta área como “20 Wedding Photographers with Outstanding Websites”.

Decidi utilizar a ferramenta Shoot Proof que por ser uma das recomendadas para este negócio deveria responder a todos os requisitos. Depois deste mail fui fazer novas pesquisas, nomeadamente de sites ligados a fotos e parece-me que todos são muito semelhantes ao meu…

Terá esta reclamação fundamento? No fundo, estas pessoas também não vão ao cinema, não conduzem… Será que não estarei a exagerar na preocupação? Se calhar estou a tentar ser mais papista que o Papa…

Para equacionar

E agora…

  • Mudar de ferramenta
  • Ferramentas de webstore existentes sem acessibilidade
  • Pedir aos clientes que descrevam as fotos
  • Tornar acessível serviços/produtos exclusivamente visuais para casos esporádicos
  • Consequências deste tipo de reclamação
  • Existem coimas para comércio online que não esteja acessível a todos

Para debater

1. O que deve fazer o Filipe?

Quais as estratégias concretas que o Filipe deve adotar?

Deixar o site como está? Tornar o site acessível?

Descrever as fotos e vídeos? Como?… se ele não sabe o nome dos convidados? Antes de fazer o trabalho deve perguntar ao cliente se vai ter convidados com dificuldades ao nível da visão?

2. Como deve responder à reclamação?

O que dizer à pessoa que reclamou? Que desconhecia o problema? Que vai tentar melhorar? Que deve pedir aos amigos para lhe descreverem as fotos? Pedir-lhe ajuda de como fazer, para que não se repita a situação?

3. Mudar de ferramenta resolve o problema?

Será que contratando um programador que desenvolva uma webstore acessível resolve o problema?

Haverá alguma ferramenta que descreva as imagens de forma automática?

4. Um site com conteúdos meramente visuais deve ser acessível?

De acordo com o Filipe, se uma pessoa cega ou com baixa visão não consegue ver as fotos e os vídeos, talvez não faça sentido preocupar-se com questões de acessibilidade.

Nas suas palavras “Terá esta reclamação fundamento? No fundo, estas pessoas também não vão ao cinema, não conduzem…” Será que o Filipe tem razão? Fará sentido tornar o site e os conteúdos (apenas imagens), acessíveis para pessoas com incapacidade visual?

(…) o problema apenas se resolve quando todos tivermos consciência do problema de uma forma geral. A partir desse momento, deixará de ser problema e evoluirá para rotina.
Samuel Patrocínio

Criar uma plataforma onde as pessoas que aparecem nas fotos se identifiquem, identifiquem os outros e acrescentem outro tipo de informação (…). Deste modo, enriqueceria as fotografias e descrições, tornando o “álbum” um lugar de convívio e interação entre todos.
Liliana Bernardo

(…) A dignidade de cada pessoa é um valor supremo. Limitar, restringir ou impedir, qualquer pessoa com limitações físicas ou outras, à informação a que deve ter acesso, é “ferir” o âmago da dignidade humana.
Samuel Patrocínio

Para reter

Considerando que cada caso é um caso e que as soluções adotadas para uma situação poderão não ser as indicadas para outras, deixamos um possível desfecho, baseado numa situação real.

A situação ainda não foi resolvida.

O Filipe falou com um programador e a situação não é fácil de resolver. Só criando uma plataforma de raiz, mas que exige bastante tempo uma vez que terá de integrar processos de proteção de imagem – não permitir guardar ou descarregar – que acabam por não ser acessíveis e colocam barreiras às tecnologias de apoio. Em alternativa, poderá colocar uma marca de água nas fotos, tal como acontece nos bancos de imagens.

Mas se, em termos de plataforma, o problema pode ser resolvido pelo programador, em termos de conteúdo a questão é mais complexa.

Para que as fotos e vídeos possam ser acessíveis será necessário descrevê-las… e o fotógrafo desconhece o nome dos convidados. Este processo terá de ser feito pelo cliente, mas irá exigir tempo uma vez que uma fotorreportagem tem mais de 100 fotos e os vídeos chegam a ter a duração de 1 hora.

Como tal, sempre que surge um trabalho, o Filipe alerta o cliente para a necessidade de descrever as imagens assim que tiver as provas e antes de as disponibilizar no site, explicando o porquê. Mas, verdade seja dita, a maioria dos clientes refere que tal não será necessário pois não têm convidados com este tipo de dificuldade…

Para consultar

Referências

DeLone, W. H. & McLean, E. R. (2004) Measuring e-Commerce Success: Applying the DeLone & McLean Information Systems Success Model, International Journal of Electronic Commerce, 9:1, 31-47, DOI: 10.1080/10864415.2004.11044317

Diretiva (UE) 2016/2284 (2016, dezembro 14) do Parlamento Europeu e do Conselho. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/?uri=CELEX:32016L2284

Gonçalves, R.; Martins, J. & Branco, F. (2014). A review on the Portuguese enterprises web accessibility levels — a website accessibility high level improvement proposal. Procedia Computer Science, 27 (2014), pp. 176-185, DOI: 10.1016/j.procs.2014.02.021

Resolução do Conselho de Ministros N.º 91/2012 (2012, novembro 8) da Presidência do Conselho de Ministros. Diário da República, 1.ª série, N.º 216, pp.6460-6465. http://dre.pt/pdf1sdip/2012/11/21600/0646006465.pdf

Rolf T. W. (1997) Electronic Commerce: Definition, Theory, and Context, The Information Society, 13:1, 1-16, DOI: 10.1080/019722497129241

Sugestões de pesquisa

E-Commerce Accessibility: Our Top 7 Issues for Product Detail Pages https://accessible360.com/accessible360-blog/e-commerce-accessibility-top-7-issues-product-detail-pages/

Ecommerce Website Accessibility: Why and How to Improve it https://blog.templatetoaster.com/ecommerce-website-accessibility/

Tipos de deficiência visual https://www.news-medical.net/health/Types-of-visual-impairment-(Portuguese).aspx

E-commerce: compras on-line mais seguras para os consumidores http://www.asae.gov.pt/pagina.aspx?f=3&back=1&id=22209