Caso 6: Comunicar no silêncio
Para começar
As “línguas dependem do cérebro humano, não do ouvido humano” (Stokoe,1960).
Quando pessoas surdas se juntam, naturalmente emerge a comunicação em língua gestual, no caso português, a Língua Gestual Portuguesa (LGP).
Na antiguidade acreditava-se que a fala era fruto do pensamento, como tal, a pessoa surda era privada de educação, sendo mesmo excluída, rejeitada ou considerada uma criatura transcendente. Em outras épocas, a surdez era também vista como uma punição dos deuses ou associada à feitiçaria, sendo a pessoa surda abandonada ou sacrificada (Lopes, 2012, p.24).
Em Portugal, desde 1997, a LGP é reconhecida como expressão cultural e instrumento de acesso à educação e igualdade de oportunidades da Comunidade Surda. Graças aos media, a LGP tem ganho visibilidade, estando cada vez mais exposta publicamente à sociedade em geral e em particular à comunidade ouvinte.
Esta evolução torna o mundo mais esclarecido, tolerante e inclusivo. Com o passar do tempo, a sociedade que antes combatia direta e indiretamente os surdos, percebeu finalmente a necessidade de criar escolas específicas para a população surda bem como de promover a sua integração no mercado de trabalho.
Para ler
Chamo-me Deolinda Monteiro, tenho 44 anos, sou empregada fabril numa fábrica de bolachas em Alhandra. Como eu costumo dizer, pior do que não ter um emprego de sonho é não ter emprego, por isso, não me queixo da vida que por aqui levo.
Em setembro do ano passado foi-me colocado mais um desafio, íamos receber, na fábrica, uma nova colega e a gerência achou por bem “nomear-me” tutora da novata. Tudo bem, eu até gosto de formar a malta mais nova, vou-lhes dando umas dicas e orientações e costuma correr bem.
Mas… desta vez era diferente, a colega nunca tinha trabalhado numa fábrica e era surda de nascença, apenas “falava” em língua gestual portuguesa. Confesso que fiquei assustada, como é que eu iria conseguir “conversar” com a rapariguinha? Sabia que não podia contar com mais ninguém da fábrica…
Para equacionar
A Deolinda sentiu-se perdida… uma coisa é comunicar com alguém que fala uma língua estrangeira, faz-se uns gestos que toda a gente entende e consegue-se, pelo menos, comunicar coisas básicas. Outra coisa é falar com alguém que não nos ouve e cujos gestos que nós achamos que todos entendem, podem ter outro significado numa Língua Gestual.
Preocupações da Deolinda…
- Como comunicar com uma pessoa surda
- Quanto tempo demora a aprender a Língua Gestual
- Comunicar pela escrita poderá ser a solução
- Será que a pessoa surda tem alguma limitação laboral
- A instituição é obrigada a tomar medidas de integração
Para debater
1. Quais são as maiores barreiras à comunicação?
Na sua opinião, quais são as grandes barreiras à comunicação entre pessoas ouvintes e pessoas surdas?
Estarão as instituições preparadas para acolher pessoas surdas nas suas equipas?
Conhece alguma estratégia de integração bem-sucedida? Quais foram as estratégias adotadas?
Pesquise exemplos de boas práticas.
2. Que medidas tomaria se fosse a Deolinda?
Colocando-se no papel da Deolinda o que faria?
Será que um curso rápido de 1 mês seria o suficiente para aprender a comunicar em LGP?
Tentar comunicar através da escrita será uma estratégia?
3. Estão as instituições preparadas para comunicar com pessoas surdas?
Será que os vários serviços, nomeadamente os públicos, têm a capacidade de comunicar com pessoas surdas? O que falta para que a comunicação seja melhorada?
Qual a forma/solução para que a pessoa surda tenha melhor qualidade de acessibilidade aos serviços públicos?
4. Uma pessoa surda tem alguma limitação laboral?
Que tipo de funções a pessoa com surdez não pode assumir?
Pesquise notícias em que a pessoa surda tenha sucesso na sua função.
A pessoa surda pode exercer qualquer área profissional, uma vez que as dificuldades são transversais a todas as pessoas. (…) a limitação laboral surge mais da impossibilidade ou dificuldade nas questões de adaptações, do que propriamente no desempenho da pessoa surda.
Marta Costa
As maiores barreiras à comunicação são de cariz físico, de cariz semântico e de cariz psicológico. As barreiras físicas advêm das distintas naturezas de línguas dos interlocutores. Sendo uma oral e outra gestual, pressupõem o uso de canais diferentes. As barreiras semânticas estão relacionadas com a arbitrariedade, propriedade inerente a qualquer língua natural. Por fim, as barreiras psicológicas parecem, a meu ver, prender-se com o desconhecimento, com o preconceito que dele resulta e com uma certa despreocupação com o outro e com as suas respetivas necessidades.
Joana Querido
A verdade é que a legislação portuguesa contempla vagas na função pública para pessoas com deficiência (nomeadamente surdez). Mas não é menos verdade que Portugal, apesar dos esforços feitos no campo da inclusão, ainda não tem intérpretes de LPG em todas as organizações.
Gabriela Lima
Para reter
Considerando que cada caso é um caso e que as soluções adotadas para uma situação poderão não ser as indicadas para outras, deixamos um possível desfecho, baseado numa situação real.
A Deolinda fez uns telefonemas para associações, procurou encontrar situações similares e trocar impressões. A colaboração do Centro Educação e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira (CEDJRP) – Centro de Recursos especializado da Casa Pia, foi determinante em todo o processo, continuando a manter contacto, de forma periódica, com a equipa de trabalho.
O Centro de Recursos do CEDJRP é composto por uma equipa especializada no apoio a pessoas surdas e surdocegas ao nível do acesso à qualificação e emprego. É uma entidade credenciada pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) desde 2013 e a trabalhar de forma estruturada desde 1989, desenvolvendo um trabalho de articulação com 24 centros de emprego da Direção Regional de Lisboa e Vale do Tejo. A intervenção destina-se somente a pessoas em idade ativa. A colaboração com o CEDJRP tem sido fundamental para esclarecer dúvidas, definir novas estratégias, definir novos procedimentos, novas tarefas, e claro, superar a desconfiança inicial da equipa e da própria colega surda.
Além desta colaboração, o trabalho em equipa tem ajudado à integração e foi-se desenvolvendo uma cumplicidade e espírito de equipa. Aos poucos aprende-se Língua Gestual com a nova colega. Cada passo dado com sucesso torna a equipa mais forte, mais organizada e mais competente. Com calma e bom senso tudo se vai resolvendo. Hoje, a equipa está mais rica, conta com mais um elemento bem integrado, sempre disponível e que, mesmo no silêncio que a caracteriza, comunica intensamente com o restante grupo.
Acrescenta-se ainda que:
Quanto a limitações laborais, a pessoa surda não as tem, exceto em situações – como referido no debate – em que a audição seja um requisito para o exercício da função.
Quanto à preparação dos empregadores… será subjetiva a resposta, pois tem a ver com a sensibilidade de cada agente para a integração do trabalhador, contanto que a pessoa com deficiência também faz parte do mecanismo de integração: todos terão de trabalhar para que funcione.
A principal barreira à comunicação é mesmo a atitude que as pessoas apresentam. Aprender a LGP é uma ótima solução, das melhores até, mas não a única: a forma como incluímos e criamos condições para que as pessoas com surdez façam parte de um grupo de trabalho – se sintam membro da equipa – é mais de meio caminho andado para resolver as barreiras da comunicação.
Para consultar
Referências
Lopes, A. P. (2012). A educação da pessoa surda. Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia. Universidade Estadual de Maringá. http://www.dfe.uem.br/TCC/Trabalhos_2012/ANA_PAULA_LOPES.PDF
Stokoe, W. C. Sign language structure. Silver Printing: Listok Press, 1960.
Sugestões de pesquisa
Associação Portuguesa de Surdos. http://www.apsurdos.org.pt/